Para Uma Exegese do Sofrimento
Em
nome de Allah, O Clemente, O Misericordioso!
Como evitar o sofrimento?
Esta
é uma pergunta que nem sempre é formulada de forma consciente por cada um de nós.
Afinal, se fossemos nos interrogar sobre o quanto podemos ou não vir a sofrer,
todas as vezes que estivéssemos prestes a tomar uma decisão, é bem provável
que a angústia nos paralisasse. Ou nos enlouquecesse.
No
entanto, a questão de como evitar o sofrimento está presente no
fundo da nossa mente a todo momento. No trabalho, nas ruas, em casa, sozinhos ou acompanhados, o que falamos, pensamos ou
fazemos tende a garantir o nosso bem-estar e afastar a dor, a angústia, as dúvidas
ou qualquer outro tipo de ameaça a nossa segurança física e espiritual. É o
nosso sentido de auto preservação que procura as respostas para aquela
pergunta, procurando nos poupar dos riscos e ameaças das aflições.
Apesar de tudo, sofremos. É que não temos defesas disponíveis que se ajustem a todas as situações em que o sofrimento nos espreita. O sofrimento nos interroga, mas o que ele nos pergunta não é quais as formas de evitá-lo. Na verdade, são três as questões que nos são apresentadas.
a)
quem és tu?
De
fato, não há ocasião melhor para nos interrogarmos sobre a pessoa que
verdadeiramente somos do que durante um momento de dor.
Tudo
que nos faz sofrer - a morte é a expressão mais sentida, chocante e visível
do sofrimento – quer nos confinar na solidão, nos afastar e nos diferenciar
dos nossos semelhantes. A dor não se compartilha. O sofrimento experimenta,
prova e testa apenas àquele que o sente. Thomas Merton, monge e pensador católico,
lembrava que "o homem nunca está tão
só como quando sofre." Ele tinha em mente o quanto somos desajeitados
ao tentar comunicar aos outros nossos sofrimentos e como os gestos de consolo,
quando expressados por outros, nos parecem patéticos e fúteis. As lágrimas, o
silêncio, as frases mal articuladas de simpatia... sentimos tudo como inútil...
Até nos recordarmos do que disse Allah, O Altíssimo: “não
criei os gênios nem os humanos, senão para Me adorarem” (Alcorão
51:56). E também: “Vou instituir um
legatário na terra!” (Alcorão 2:30) e, em seguida, enobreceu a esse
legatário (Adão e sua descendência)
conduzindo-o pela terra e pelo mar; agraciando-o com todo o bem, e o preferindo
enormemente sobre a maior parte de tudo que foi criado (Alcorão 17:70).
A
primeira das respostas que procuramos, portanto, é dupla.
Inicialmente,
devemos nos lembrar – em todos os momentos e não apenas quando em aflição
– que fomos criados para servir a Allah, adorando-O. Somente a lembrança da
constante presença divina em nossas vidas poderá nos preservar - entre dores e
alegrias - como pessoas. Somos servos submissos de Allah, mas também seus legatários
na terra. Nos humanos foi inspirado o Sopro divino. A eles foi permitido
adquirir conhecimentos e entregue a confiança
(livre arbítrio) para escolher entre o bem e o mal. Todos estes atributos nos
diferenciam dos animais que, quando sofrem, tudo que procuram é morrer quietos
e sem comoção desnecessária.
Há quem encontre um outro tipo de resposta. Geralmente, recorre-se a um ascetismo natural, orgulhoso de si mesmo, fundado em um misticismo selvagem e não revelado por inspiração divina. Walt Whitman, poeta norte-americano do século XIX, sentencia no "Canto a mim mesmo": "não lamento o que o mundo lamenta/que os meses são vazios e a terra apenas lodaçal e imundície (...)/Existo como sou, e isso basta". Acreditar que se é apenas o que se aparenta ser – um corpo físico animado dissociado de Allah, O Criador – é também parte da resposta errada para a segunda questão que nos coloca o sofrimento.
b) o que podemos?
Muitas
pessoas compartilham do sentimento de auto suficiência em relação à vida,
expresso nos versos de Whitman, e estão satisfeitas consigo mesmo. Elas exaltam
a superação do mal e acreditam que a realização do indivíduo finda no auto
conhecimento. Geralmente, também acreditam no poder e no valor do sofrimento
porque ele pode nos mostrar que somos suficientemente fortes e intrinsecamente
bons para suportar "o vazio, o lodaçal e a imundície" do mundo e,
apesar de tudo, amar, criar e viver. São pessoas boas, mas - para ficar com o
verso de um outro poeta – “eu jamais
vi algum animal selvagem/sentir pena de si mesmo./Um pássaro cairá de seu
ninho, morto,/sem nunca ter sentido/pena de si mesmo.” (Self
Pitty – D.H. Lawrence). Neste
sentido, a auto suficiência não se diferencia tanto assim dos instintos das
criaturas irracionais.
O
amor excessivo a si mesmo é um erro. Entre outros pecados, ele nos leva a ver
no sofrimento apenas a oportunidade de nos orgulharmos por poder suportá-lo.
Com certeza, o sofrimento só tem valor como prova, mas esta é a prova de um
paradoxo: o que temos que comprovar não é que somos fortes, sobrenaturais e
auto-suficientes diante da dor, mas sim a humildade de nos reconhecermos fracos,
humanos e necessitados de ajuda.
“Recordai-vos de Mim, que Eu Me recordarei de vós”, disse o Senhor
Allah, e o mestre e poeta sufi Djalal-ud-Din Rumi (século XIII) nos recorda que
“a resposta de Allah é essencialmente idêntica a invocação daquele que
suplica a Ele”.
Assim,
a resposta certa que procuramos requer uma inversão da segunda pergunta.
A
questão que devemos nos colocar não é o
que podemos fazer, mas sim o que Allah
fará de nós?
Recordemos, ainda, que nos foi dado (como humanos) o discernimento e a permissão para investigar e agir sobre a natureza de determinadas coisas – inclusive nossos sentimentos – mas há outras obras de cuja ciência só Allah tem conhecimento. Em retribuição a esses dons, quando desfrutamos de bem-aventuranças, não devemos imaginar que isso se deve unicamente a nós. Pensar assim é cair em erro. Da mesma forma, se enfrentamos adversidades, não temos que nos queixar, reclamar ou desesperar de Allah, “porque só desesperam da Sua misericórdia os incrédulos” (Alcorão 12;87). Os sábios nos lembram:
Ao
lhe dar, Ele revela Sua bondade,
Ao
lhe privar, Ele lhe revela Seu poder.
Nos
dois casos, Ele Se revela a você
e vem para você em Sua solicitude.
A confiança em Allah deve nos tranqüilizar e confortar quanto àquilo que nos parece ruim ou desnecessário. A adversidade tem seu propósito no plano divino. Esse propósito, que na maioria das vezes nos está oculto, é o verdadeiro sentido da predestinação. Ela significa que “tudo provêm de Allah”, mas não que devemos sentar e esperar que ele faça tudo por nós. Onde está escrito que “com a adversidade está facilidade”, em seguida nos é recomendado para retomarmos nossos esforços, quando concluirmos nossos afazeres, e voltarmos para O Senhor toda a nossa atenção (Alcorão 94:6-8). Allah nos deu o entendimento para vencermos o mal, alcançando o bem que nos está reservado. O caminho para isso, é tentar encontrar o sentido mais profundo de cada acontecimento, bom ou mal, pois a sabedoria divina está escondida em tudo. Essa tentativa, nos leva a terceira questão.
c) porque sofremos?
Os
budistas nos dizem: “a primeira nobre
verdade é que tudo no mundo é sofrimento. Nascer é sofrer, envelhecer é
sofrer, morrer é sofrer, estar unido àquilo que não gostamos é sofrer,
separarmo-nos daquilo que amamos é sofrer, não conseguir o que queremos é
sofrer.” Esta é uma lógica assustadora, que retira todo o sentido aos
nossos esforços para servir a Allah, assim como torna inútil os dons do
conhecimento que Ele nos concedeu.
Na surata Al Bácara, onde repetidas vezes é lembrado o dom da razão humana, está escrito que “Allah não impõe a nenhuma alma uma carga superior às suas forças. Beneficiar-se-á com o bem quem o tiver feito e sofrerá com o mal quem o tiver cometido.” (Alcorão 2:286).
Procurar
uma resposta que nos esclareça as razões dos nossos sofrimentos, ao mesmo
tempo que confirme a nossa humanidade, pode nos afastar tanto quanto nos
aproximar de Allah. Os que se afastam vêm no sofrimento uma punição, porque só
compreendem essa vida como um jogo de castigos e recompensas imediatas. Ou não
compreendem nada, já que o sofrimento se abate sobre qualquer um. Se abate
sobre os muitos corajosos, sobre os que ficam mais fortes depois de abatidos e
os muitos delicados. O sofrimento abate os perversos tanto quanto abate os bons.
Mas, Allah disse: “Porventura, pensam os humanos que serão deixados em paz, só porque
dizem: Cremos!, sem serem postos à prova?” (Alcorão 29:2)
Mesmo
o sofrimento na fé tem seus incômodos. Há quem considere necessária e
procure a auto-flagelação, provações físicas para assim glorificar a fé
que alegam ter em Allah. Os que assim procedem têm uma idéia bastante
equivocada sobre Allah e, de forma disfarçada, também amam apenas a si mesmos.
Ninguém pode desejar sofrer e com isso ser agradável a Allah. Uma tradição
do Profeta Muhammad (s.a.a.s.) assegura que “Allah ama o bem e a
beleza”.Todo e qualquer sofrimento é, em si mesmo, um mal. Portanto, não
pode ser agradável a Allah que soframos. É um equívoco considerar que Allah
necessita de nossos sacrifícios. Ele é o Auto-Subsistente, o Misericordioso, e
não se compraz com nossas dores.
Não
é o sofrimento que leva à santidade.
Os que se aproximam de Deus, não pela ânsia de uma explicação pronta ou um consolo passageiro para as questões que nos são apresentadas, mas pela fé, descobrem que “o sofrimento é um mal que temos sempre de esperar ver em nossas vidas”, uma vez que suas raízes estão no “mal insuspeitado que existe em nossos próprios corações”. O sofrimento leva os que têm fé à humildade de ser pacientes diante dos decretos divinos. Sofremos para que nos tornemos mais puros e melhores ao sacrificarmos nosso orgulho e nossas ilusões de conhecimento e poder. Através do sofrimento, Allah pode estar querendo nos mostrar as coisas como elas realmente são e nos devolver a noção da nossa humanidade perdida, lembrando-nos que - como tudo na Criação - também somos transitórios e submissos a Ele.
Texto: Carlos Peixoto, muçulmano, jornalista do jornal Tribuna do Norte, de Natal.