O Jesus Muçulmano
Quadro com Nomes de Alguns Profetas de Deus: Muhammad (saws), Aadam (Adão) (as), Nuh (Noé) (as), Ibrahim (Abraão) (as), Musa (Moisés) (as), Issa (Jesus) (as)
Em Nome de Allah, O Clemente, O Misericordioso!
“E
quando os anjos disseram: Ó Maria, Allah te anuncia o Seu Verbo, cujo nome será
o Messias, Jesus, filho de Maria, nobre neste mundo e no outro, e que se contará
entre os próximos de Allah. Falará aos homens, ainda no berço, bem como na
maturidade, e se contará entre os virtuosos. Perguntou: Ó Senhor meu, como
poderei ter um filho, se mortal algum jamais me tocou? Disse-lhe o anjo: Assim
será. Allah cria o que deseja, posto que quando decreta algo, basta dizer:
Seja! E é.” (Alcorão 3: 45-47)
Os
versículos acima, da surata Ál Imran (A Família de Imran, ou
seja, a linhagem sacerdotal entre os judeus iniciada com Aarão, irmão de Moisés
e filho de Imran, como descrita em Êxodo 29:1-37), é uma das 26 passagens
contidas no Alcorão sobre Jesus (Issa, em árabe), que as benções de
Allah estejam sobre ele. Em cada uma delas, está entendido que o nascimento de
Jesus foi a expressão da vontade de Allah, anunciada pelo arcanjo Gabriel à
virgem Maria, para que os homens (judeus e gentios) conhecessem, através dele,
a orientação e a luz, praticassem o monoteísmo e a caridade, observassem os
preceitos divinos para além das leis humanas e confiassem nas promessas para o
Dia do Juízo. O Alcorão relata trechos dos milagres, da vida de pregações e
da bondade de Jesus como exemplos, assim como a promessa de Allah sobre a ascensão
dele ao céu, sem ter conhecido nem a morte nem a ressurreição, e a vitória
dos seus seguidores sobre os incrédulos “até o Dia da Ressurreição”,
quando Allah julgará, então, as questões sobre os quais todos divergem. Na
surata Az Zúkhruf (Os Ornamentos) é feita uma referência a
segunda vinda de Jesus como “um sinal (do advento) da Hora” (Alcorão
43:57-64), logo antes da Ressurreição, quando as falsas doutrinas que usam seu
nome serão destruídas e ele preparará o caminho para a aceitação universal
da submissão a Allah. Mas, apesar de tudo isso, o Jesus dos muçulmanos não é
o mesmo dos cristãos.
No
Islã, Jesus é o Verbo (Mensagem) encarnado, o Ungido (Messias) e um dos
Mensageiros preferidos por Allah, mas não é o “filho de Deus”. Para os muçulmanos,
a natureza divina atribuída a Jesus é um exagero e um desvio posteriores a sua
pregação. “Jesus anunciava o Reino, mas foi a Igreja que apareceu.”
A frase é do historiador Alfred Loisy (1857/1940). Ela não retira a
legitimidade da Igreja como instituição, mas ajuda a lembrar que é preciso
relativizar os dogmas e preceitos que resultaram não da pregação dos
profetas, mas sim das necessidades práticas com as quais toda religião se
defronta mais tarde. Cristãos bem informados e de boa fé concordarão com ela
e também com o fato de que o dogma da Santíssima Trindade e outras exigências
canônicas (como o celibato) não estão incluídas na mensagem de Jesus, mas são
resultados da atuação social e das relações políticas de poder que passaram
a influenciar os atos da Igreja.
Não
há, em todo o Evangelho, nenhuma passagem em que Jesus se auto intitule
“Deus”. A Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) só começou a ser
introduzida de forma explícita na doutrina cristã por Paulo, na carta a Tito
(2:13) composta por volta do ano 65 d.C., e levou muito tempo para ser
inteiramente aceita, inclusive contando com a oposição inicial do apóstolo
Pedro. Mesmo nos textos imediatamente posteriores às cartas paulinas, como nos
Atos dos Apóstolos (data de composição presumida, entre 83 e 87 d.C.) –
cuja autoria é atribuída ao evangelista Lucas, companheiro dileto de Paulo –
o tratamento preferencial é o de Marana e/ou Kyrios (vocábulos
hebraico e grego, equivalentes a Nosso Senhor ou Senhor). No Quarto Evangelho,
atribuído a João, a preexistência e a natureza divina do Verbo/Cristo está
fixada, identificando-o com o logos dos gregos, mas esse é o mais tardio
dos Evangelhos (composto, talvez, nos últimos anos do século I) e está
claramente enviesado pelas doutrinas alexandrinas e gnósticas da época.
Somente em 325, sob a proteção do imperador não-cristão Constantino, no Concílio
de Nicéia, é que a natureza divina de Cristo é oficializada. Em 451, no Concílio
de Calcedônia, a Igreja declarou que Jesus era Deus e Homem, legitimando em
definitivo as posições de Paulo.
A
impossibilidade de reconhecer a natureza divina de Jesus pelo Islã - ou de
qualquer outro profeta, uma vez que “Allah é Único, Eterno e Absoluto,
jamais gerou ou foi gerado, e ninguém é comparável a Ele” (Alcorão
112:1-4) – será sempre a maior dificuldade no diálogo com o cristianismo.
Uma dificuldade que tem sua correspondente na recusa e desconfiança, por parte
dos cristãos, quanto a origem divina e a sinceridade da mensagem recebida por
Mohammad (s.a.a.s.). O quanto estamos distantes de uma solução de consenso
pode ser medido pelo fato de que mesmo um católico que acredita no diálogo
islamo-cristão – como o padre Jacques Jomier, um dos fundadores do Instituto
Dominicano de Estudos Orientais do Cairo – sinta necessidade de alertar: é
preciso tomar cuidado com os muçulmanos que, durante festas como o Natal, “recitarão
as passagens corânicas referentes a Jesus e a Maria, para agradar aos cristãos”
(Islamismo – História e Doutrina, pp. 191. Vozes/1992). O aviso serve
como introdução – em um livro que deveria promover uma maior compreensão do
Islã pelos cristãos – à reafirmação de que só a visão da Grande
Igreja (sic) traduz a fé verdadeira, possível de levar os homens à salvação.
Entretanto, acima das interpretações teológicas, o que deve permanecer é a força espiritual inerente às mensagens de Jesus e Mohammad (s.a.a.s): o culto do amor a Allah/Deus, O Único, e aos homens. Esse objetivo é suficiente para manter abertas vias permanentes de cooperação. Cristão e muçulmanos têm muito a ganhar seguindo o caminho descrito pelo místico Ibn Arabi e aproximando-se da essência da fé comum:
“Meu
coração tornou-se capaz de qualquer forma:
é
um pasto para gazelas e um convento para os monges Cristãos,
um
templo para os ídolos e a Caaba do peregrino,
as
tábuas da Tora e o Alcorão.
Sigo
a religião do Amor: para onde quer que sigam seus camelos,
o
Amor é a minha religião e minha fé.”
Texto: Carlos Peixoto, muçulmano, jornalista do jornal Tribuna do Norte, de Natal.