Muçulmanos e Democracia
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Com freqüência é atribuído ao passado um peso decisivo nos chamados países islâmicos, particularmente em relação à sua receptividade à democracia. Este passado seria tão forte que poderia canalizar, limitar ou até bloquear os efeitos de mudanças tecnológicas, econômicas e sociais. Mas o passado que é mais relevante neste caso não é, como se acredita, os primeiros séculos da história islâmica, mas o encontro ocorrido entre estes países e os países do Ocidente, no século 19. O encontro intelectual entre muçulmanos árabes e europeus ocorreu através de confrontos duros. Jamal-Eddin Al-Afghani (1838-1897), um dos primeiros e mais destacados pensadores e ativistas na luta contra o despotismo, ficou famoso ao se engajar em uma controvérsia contra europeus secularistas. Sua reputação foi adquirida especialmente por seus esforços em refutar as críticas européias à religião em geral e ao Islã em particular. Ele usou o termo "dahriyin" que significa literalmente "temporalistas" para se referir aos secularistas. A palavra, de origem corânica, tinha sido aplicada originalmente aos ateus. Desta forma Al-Afghani implicitamente equiparou os positivistas do século 19 aos oponentes do Profeta (SAWS) do século 7. A partir daí o secularismo se tornou intimamente relacionado com o ateísmo e o sentimento que tem prevalecido entre os muçulmanos de países do Oriente é de que existe uma estrita e irredutível oposição entre dois sistemas - o islâmico e o não-islâmico. No final do século 19 e início do século 20, o confronto com os poderes coloniais, considerados como portadores e defensores de uma mistura de um proselitismo cristão agressivo e um novo secularismo, desempenhou papel importante no fortalecimento deste dualismo. Nos diversos conflitos que a população local empreendeu para defender sua independência, identidade e religião se fundiram. A oposição entre local e intruso, entre muçulmano e europeu, entre crente e secularista foram, de um modo ou de outro, instituídas. A polarização resultante passou a dominar todas as atitudes e abordagens às questões ligadas à religião, política e ordem social. Uma das mais impressionantes consequências desta evolução é que o Islã na atualidade parece ser a religião mais hostil à secularização e à modernidade em geral, embora intrinsicamente o Islã seja a religião mais próxima das opiniões e ideais modernos e portanto, aquela que mais facilmente se acomodaria à secularização. Os desenvolvimentos históricos entretanto fizeram com que as sociedades de maioria muçulmana se desenvolvessem na direção oposta - a da perda da autonomia individual e da total submissão à comunidade e ao Estado. Esta evolução gerou dicotomias do tipo "Islã e Ocidente", "Islã e modernidade", "Islã e direitos humanos", "Islã e democracia" e outros do gênero. O fato de que continuamos elaborando questões do tipo "O Islã é compatível com democracia?" mostra o quanto esta polarização se fortaleceu. De fato, mesmo os muçulmanos que adotam uma posição digamos, mais conservadora ou ortodoxa, aceitam a idéia de que o Islã não se opõe à democracia. Alguns argumentam que adotando o princípio de "shura" (ou consulta mútua), o Islã sempre favoreceu o tipo de relacionamento entre governante e governados que a democracia acarreta. A democracia poderia até ser descrita como uma adaptação ocidental de um princípio originariamente islâmico. Como conceito e princípio, "shura" no Islã não difere da democracia. Tanto "shura" quanto democracia partem da noção de que a deliberação coletiva leva a um resultado mais adequado ao bem social do que a preferência individual. Ambos os conceitos pressupõem que o julgamento da maioria tende a ser mais apurado do que o julgamento da minoria e ambos provém da ideia de que todas as pessoas são iguais em direitos e responsabilidades. Tanto o conceito de democracia quanto o de "shura" rejeitam qualquer governo que não se origine em eleições livres e que negue ao povo, através de um processo constitucional, o direito de substituir o governante por violação de confiança. A lógica da "shura", como a lógica da democracia, não aceita governo hereditário, uma vez que sabedoria e competência não são monopólio de um indivíduo ou família. Da mesma forma, ambos rejeitam o governo imposto pela força porque qualquer governo mantido através de coação é ilegítimo, e ambos proíbem privilégios - políticos, sociais e econômicos - baseados em linhagem tribal ou prestígio social. Portanto, o conceito proposto seria de uma "democracia orientada", baseada nos preceitos éticos e morais estabelecidos no Alcorão e na "sunnah" e portanto, na Charia. Para o não-muçulmano a ideia de que a democracia e a aplicação da Charia possam ser compatíveis parece improvável. Entretanto, é importante ter em mente que o termo Charia se refere exclusivamente às determinações existentes no Alcorão e na "sunnah" do Profeta (SAWS) e não nas interpretações destas fontes desenvolvidas por juristas muçulmanos do passado, que são chamadas de Leis de "Fiqh". As Leis de "Fiqh", por se basearem em interpretações humanas, não são consideradas imutáveis e nem infalíveis e podem ser revistas de modo a se adequar às necessidades da atualidade. O Irã pode ser considerado um caso onde este tipo de doutrina foi implementada. Em acréscimo às instituições comuns a todas as democracias, como eleições presidenciais e parlamentares, o governo também incorpora um conselho de especialistas em religião que asseguram que as leis e decisões tomadas por aqueles que foram eleitos pelo povo estejam em conformidade com as normas e princípios religiosos. Embora o Irã ainda tenha grande dificuldade em aplicar de forma correta este conceito, a ideia geral prevalece. Se uma grande parte da população dos países de maioria muçulmana hoje em dia invoca religião mais que democracia como alternativa ao despotismo, e outros consideram a democracia, pelo menos implicitamente, como um novo tipo de crença religiosa, não é devido a características especiais do Islã ou dos muçulmanos. É função de circunstâncias históricas particulares. Nenhuma característica do Islã explica o nível de degeneração cívica com a qual estes países são afligidos na atualidade, e não é uma particularidade árabe nem um artigo da fé islâmica que a liberdade de expressão esteja sufocada na maioria destes países, que o povo tenha negado o direito de eleições livres, que as decisões do governo sejam conduzidas sem o benefício do consenso e que a atividade política pacífica seja proibida. Não é árabe ou islâmico que o destino das nações árabes esteja nas mãos de umas poucas pessoas que ignoram limites constitucionais. O confronto entre a população destes países e poderes coloniais europeus no século 19 gerou grandes e duradouros mal-entendidos. O resultado foi a rejeição de aspectos chaves da modernidade considerados uma alienação e uma submissão de seu eu histórico ao "Outro". Os princípios de justiça, igualdade e dignidade humana existem em ambos, democracia e "shura", e na realidade o termo escolhido não faz diferença. O importante é que estes princípios possam novamente ser implementados nas nações onde os muçulmanos são maioria. Elaborado por Maria Moreira, webmistress do Islamic Chat.
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