Mulheres
muçulmanas vivem em várias sociedades
e comunidades onde legislação, costumes e tradições, afetadas ou
inspiradas por interpretações do Alcorão e da Charia, combinam
para definir os conceitos do papel feminino. Estes conceitos
podem variar de uma classe ou geração para outra, assim
como podem variar de um país para outro.
A
opinião pública no Ocidente geralmente ignora esta diversidade e é
largamente influenciada por suposições
profundamente
enraizadas de que o Islã é uma religião monolítica. A tendência
em explicar esta suposição se apóia na citação do Alcorão e
outras fontes islâmicas, tomadas em geral
fora de contexto. Esta atitude ignora também que a cultura islâmica foi sujeita a crescimento e desenvolvimento,
adaptação
e mudança.
Ao
longo dos séculos a cultura islâmica foi permeada
por uma sucessão de aquisições que
refletem
a forma complexa na qual a crença religiosa e a realidade
social se acomodam. Existe, é claro, o fator unificador fornecido
pelo Alcorão como fonte do idioma e da fé e dos cinco
pilares da crença: o testemunho de fé (chahada), a oração, o
"zakat" (caridade), o jejum e a peregrinação à Meca. Entretanto,
esta unidade é acompanhada de uma multitude
de diversidades que precisam ser levadas em conta em
qualquer discussão sobre o Islã e sua prática por muçulmanos.
Para
identificar o que é "islâmico" é necessário fazer uma
distinção entre as fontes primárias do Islã (o Alcorão e a "Sunnah"
do Profeta Muhamad (SAWS)) e as opiniões legais de estudiosos e
teólogos em assuntos específicos, que podem ser influenciadas pela
época em que viveram, pelas circunstâncias que levaram à adoção
de uma determinada opinião e pela cultura do estudioso ou teólogo em
questão. Tais opiniões e vereditos não desfrutam da infalibilidade
atribuída às fontes primárias do Islã.
No
atual clima político, o lado "fundamentalista" do Islã
tende a ser representado como universal, irracional, aterrorizante e
louco. Em contraste, as denominações fundamentalistas cristãs são
geralmente descritas como "aberrações menores" de "restrita
significância política". Do
Norte da África ao Paquistão, descendo até a Indonésia, o Islã se
tornou uma força social e política colidindo com a consciência das
sociedades ocidentais. Frequentemente o Ocidente dá pouca ou nenhuma
atenção ao contexto econômico, social e cultural no qual o
movimento islâmico opera ou às razões porque o Islã é considerado
como um modelo político alternativo em relação àquele imposto pela
elite governante.
As participantes do Workshop Internacional de
Mulheres dos Países Islâmicos realizado em Lahore, Paquistão, em
1986 concluíram:
"O
Islã e a cultura islâmica são uma realidade complexa. Esta
complexidade é distorcida pelo Ocidente nos termos em que o Ocidente
vê o Islã. Mas o Ocidente tem uma posição contraditória em
relação ao Islã. Por um lado, opera uma ativa propaganda
anti-islâmica, por outro, suporta o fundamentalismo. Em ambos os
casos, entretanto, é movido por propósitos políticos."
No
centro das atenções geradas pelo ressurgimento da prática islâmica
em diferentes partes do mundo, está o interesse ocidental na mulher
muçulmana. Na mente ocidental a muçulmana tende a invocar a imagem
de mulheres totalmente veladas, esposas confinadas, cujas vidas
consistem de pouco mais que suas casas, suas crianças e outras
mulheres de sua família.
Esta
descrição pode corresponder à verdade em algumas sociedades
muçulmanas do passado e é parcialmente verdadeira em algumas
comunidades da atualidade, mas é restrita e de relevância limitada
para a compreensão das vidas da maioria das mulheres muçulmanas de
hoje. Esta
percepção é fortemente influenciada pela informação dos primeiros
ocidentais que viajaram para o chamado Mundo Islâmico, que imaginavam
as mulheres nativas como pagãs ignorantes ou como seres exóticos
cobertos por várias camadas de roupa. Estes conceitos prevalecem
até hoje, apesar do fato de que em muitas sociedades pode-se encontrar
mulheres muçulmanas engajadas em uma ampla variedade de
atividades econômicas.
A
segregação das mulheres sauditas por exemplo, não impediu sua
entrada na economia moderna, embora suas atividades estejam
concentradas em áreas onde o contato com pessoas do sexo oposto não
ocorra. Isto prova que mesmo em sociedades onde existe uma rígida
segregação entre os sexos, as vidas das mulheres demonstram muito
mais flexibilidade do que é geralmente suposto.
Existe
uma tendência em reduzir a relação homem-mulher à uma dicotomia
simplista, associando os homens com o espaço público e
consequentemente com poder e autoridade, e mulheres com a esfera
privada e, portanto, relativamente sem poder na sociedade.
A ênfase dada à importância da vida familiar na sociedade
muçulmana e ao papel desempenhado pela mulher dentro da família, faz
com que ela exerça influência considerável em suas comunidades,
mesmo que isto ocorra, em alguns casos, de forma indireta.
Consequentemente,
a palavra "muçulmana" tende a ser usada como um rótulo, que
ignora a multitude de fatores contribuindo para a definição da
posição da mulher nas sociedades islâmicas, tanto no passado quanto
no presente. Deve-se
ter em mente que o feminismo é fortemente apoiado nas prioridades da
mulher ocidental branca, de classe média, européia ou
norte-americana, na suposição de que estas
prioridades devem ser tidas como ideais e, consequentemente, ser
impostas às mulheres de raças e culturas diferentes.
Na
verdade o movimento feminista tem dependido basicamente da
chamada literatura Orientalista para entender o Oriente. A
imagem histórica que os orientalistas criaram do Oriente é complexa.
De um lado há um reconhecimento da "glória perdida" das
culturas orientais da Antiguidade e do débito que o Ocidente tem em
relação ao Oriente. Por outro, e sobrepondo esta imagem positiva,
está a imagem do declínio. Esta história recriada explicou a
decadência das culturas orientais e legitimou a sua colonização
pelos países europeus.
O
feminismo repetiu o mesmo processo e a questão é: em quanto
o feminismo das mulheres brancas do Ocidente foi construído a partir
da posição de poder dada à elas através da história do
colonialismo Ocidental? Esta questão foi inicialmente levantada
nos anos 80 por feministas negras que se sentiam excluídas das
prioridades do que elas consideravam "feminismo imperial".
Na
tentativa de corrigir este erro, o movimento feminista resolveu dar
voz às mulheres negras, mas passaram a considerar as mulheres negras
do Ocidente como referência para todas as mulheres negras do mundo e
por extensão, para todas as mulheres não-brancas e mais ainda, para
todas as mulheres do Terceiro Mundo.
A
diversidade de opiniões, idiomas, culturas, religiões, instituições políticas e econômicas com
as quais as mulheres do
Terceiro Mundo interagem, não se tornou parte do discurso feminista
que continuou largamente apoiado na perspectiva Ocidental, mais
especificamente, na perspectiva norte-americana e européia.
A maioria das
mulheres muçulmanas considera difícil adotar o modelo ocidental de
feminismo, que parte da premissa de que ele é universalmente
aplicável. Em primeiro lugar, muçulmanas não consideram laços
familiares como um impedimento para a liberdade da mulher; segundo,
existe um ressentimento com a identificação ocidental da condição
da mulher muçulmana; terceiro, salários não funcionaram
necessariamente como uma "força liberadora" no sentido
advocado pelas feministas.
Com o número
cada vez maior de ocidentais, na maioria mulheres, que se convertem ao
Islã, a
idéia de estabelecer um padrão de comportamento feminino facilmente
identificável como exclusivamente ocidental ou oriental está se tornando ainda mais
difícil.
O
reconhecimento pelo movimento feminista de que mulheres de raças,
culturas e religiões diferentes podem ter prioridades diferentes e
que estas diferenças devem ser aceitas e respeitadas, é fundamental
para que o movimento não se torne ainda mais alienado na discussão
das questões das mulheres muçulmanas. É importante que
reconheçam que não existe um "modelo ideal" de feminismo
que deve ser adotado por todas as mulheres do mundo.
É presunção crer que a
muçulmana não é capaz de estabelecer suas próprias prioridades e
que não é inteligente o bastante para contribuir com idéias úteis
para o bem-estar e desenvolvimento da sociedade em que vive,
precisando ser "protegida", "tutelada" e
"representada" pelas
feministas não-muçulmanas.
Também não
se deve incorrer no erro de conferir às muçulmanas de uma
determinada região, o Oriente Médio por exemplo, a
representatividade e a capacidade de estabelecer as prioridades para
as muçulmanas que vivem em outras partes do mundo.
Na verdade, as
críticas apresentadas aqui não impedem o reconhecimento de que o
movimento feminista, apesar do enfoque limitado com que trata a
questão das muçulmanas, tem contribuído muito para que a
situação das mulheres nos chamados países islâmicos seja
discutida, e que alguns dos direitos estabelecidos no Alcorão e na
"sunnah" do Profeta (SAWS) sejam restabelecidos. Direitos
que foram dados às mulheres há mais de 1.400 anos atrás e que foram
devidamente surrupiados por "governos islâmicos" e "sábios
muçulmanos", que se incumbiram de elaborar "fatwas" (vereditos)
visando apenas manter velhas tradições com uma legitimação
religiosa. Mas foi justamente este comportamento retrógrado dos
próprios teólogos muçulmanos que fez com que o movimento feminista
obtivesse boa acolhida em alguns dos chamados países islâmicos. Se
os ensinamentos islâmicos em sua forma original estivessem sendo
aplicados, as mulheres destes países não teriam necessidade de
recorrer a um modelo que ignora premissas básicas da cultura e
religião a que pertencem.
Estabelecer um
diálogo onde mulheres, muçulmanas ou não, de todas as raças e
culturas, possam expressar livremente suas opiniões e anseios,
trocando experiências, informações e conhecimento em pé de
igualdade, seria extremamente proveitoso para todas as envolvidas.
Finalmente,
não é necessário que as muçulmanas recorram ao modelo feminista
ocidental para reconquistar os direitos que o Islã lhes concedeu e que "governos
islâmicos", surrupiaram. E nem é incompatível ser,
simultaneamente, muçulmana e feminista como muitos podem pensar,
desde que não se tenha em mente o conceito de feminismo que tem
prevalecido até os dias de hoje. É suficiente estudar o Islã para
conhecer os seus direitos e saber como reivindicá-los, com a certeza
de que os homens da comunidade não estão fazendo nenhum favor ou
concessão, simplesmente porque estes direitos foram estabelecidos por
Deus no Alcorão.
Fatima
Mernissi, conhecida feminista muçulmana, em uma discussão histórica
sobre a condição das mulheres no Islã,
afirmou:
"Nós,
mulheres muçulmanas, podemos caminhar no mundo moderno com orgulho,
sabendo que a busca por dignidade, democracia e direitos humanos, por
plena participação nos assuntos políticos e sociais de nossos
países, não deriva de valores ocidentais importados, mas de uma
parcela real da tradição islâmica".