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A maioria das perspectivas ocidentais é fundamentada em ignorância
Quando um líder da resistência do País de Gales foi capturado e
trazido ante o imperador de Roma, ele disse: "Porque você deseja
conquistar o mundo, isto não quer dizer que o mundo deseja ser
conquistado por você". Hoje em dia, seria possível oferecer um
eco daquele sentimento para os liberais ocidentais: "Porque você
desejam que seus valores prevaleçam em todo o mundo, isto não quer
dizer que o resto do mundo queira adotá-los". A voz imperial é
baseada na ignorância das ricas tradições de outras civilizações,
assim como em uma visão exageradamente otimista do que o Ocidente vem
fazendo com o resto do mundo, política, econômica e ambientalmente.
As crenças arraigadas que muitos ocidentais professam sobre o Islã
freqüentemente revelam mais sobre o próprio Ocidente do que sobre o Islã e os muçulmanos. Os Otomanos constituíram a mais longa dinastia
da história; a sua duração deveu-se em parte à sua habilidade de
governar um império com múltiplas crenças, em uma época em que a
Europa estava ocupada enforcando, afogando e esquartejando diferentes
variedades de cristãos.
Hoje em dia o Islã é visto como menos tolerante que o Ocidente, e nós
deveríamos perguntar quais são, precisamente, os tais 'valores
ocidentais' com os quais o Islã é tão incompatível?
Alguns acreditam que a atitude do Islã em relação às mulheres é a
fonte dos 'problemas muçulmanos'. Entretanto, ocidentais deveriam
analisar suas próprias atitudes e reconhecer que apenas recentemente as
estruturas patriarcais começaram a erodir por aqui.
A tradição islâmica realmente tem algumas áreas de aparente
incompatibilidade com os objetivos das mulheres no Ocidente, e os muçulmanos
têm muito o que melhorar em suas atitudes em relação às mulheres.
Mas culpar a religião é, de novo, uma expressão da ignorância tanto
da religião em si, como da luta histórica pela igualdade das
mulheres nas sociedades muçulmanas.
Uma leitura cuidadosa das teólogas modernas do Islã causaria enorme
admiração por parte das mulheres ocidentais, dadas as injunções
legais que têm mais de 1.000 anos, como por exemplo a garantia ao
direito de ajuda nas tarefas domésticas às expensas dos maridos. Três
das quatro escolas sunitas consideram que tarefas domésticas não fazem
parte das responsabilidades das esposas. Compare isto às pesquisas nos
EUA que mostram que as mulheres que trabalham fora são também
responsáveis por 80% do trabalho doméstico.
Os ocidentais, em sua campanha por conformismo global, frequentemente
falam de 'progresso' e da rejeição de um passado feudal não tão
distante, mas quase nunca referem-se ao seu desconforto com a hegemonia
corporativa e as implicações humanas reais da globalização.
Nenhum destes missionários dos valores ocidentais dispõe-se a
considerar porque a Europa, o coração do Ocidente, gerou duas guerras
mundiais que mataram mais civis do que todas as guerras dos 20 séculos
anteriores juntas. Nós muçulmanos somos obrigados a chamá-las de 'guerras
mundiais' a despeito de terem sido 'guerras ocidentais', as quais
visaram atingir civis com armas de destruição em massa em uma época
em que o Islã estava em paz.
Nós muçulmanos não nos deixamos persuadir pelas muitas reivindicações
triunfantes feitas pelo Ocidente, mas estamos felizes com seus valores
centrais. Como ocidental, e produto de uma geração de ativistas pelos
direitos civis e pela paz, eu abracei o Islã sem ter que abandonar meus
valores centrais, os quais provêm de uma tradição progressista, mas
sim os confirmei. Eu venho estudando a Lei Islâmica nos últimos 10
anos com estudiosos treinados tradicionalmente, e embora existam alguns
detalhes em textos legais do período medieval que me perturbem, nunca
verifiquei qualquer incompatibilidade entre os valores centrais da fé e
aquilo que minha mãe, uma californiana progressista, me ensinou. Ao
contrário, eu não canso de surpreender-me ao verificar como o que as
sociedades ocidentais reivindicam como seus mais elevados ideais são
profundamente enraizados na tradição Islâmica.
Este aparente chauvinismo de alguns ocidentais é normalmente acionado
pelo extremismo Islâmico. Poucos entretanto se dão ao trabalho de
observar que a maioria dos muçulmanos detestam o extremismo, assim como
os ocidentais. Meu medo é que isto tudo sirva de desculpa para prover a
estes poucos ocidentais um substituto para o seu antigo hábito de anti-semitismo.
Esta substituição não é difícil de ocorrer. Afinal de contas, os árabes
são semitas, e os ensinamentos do profeta árabe são mais próximos da
teologia judaica do que da cristã. Nós muçulmanos no Ocidente, assim
como os judeus anteriormente, lidamos com as mesmas questões que os
judeus lidaram no passado: integração ou isolamento, tradição ou
reforma, casamentos dentro ou fora da religião.
O muçulmanos que sonham com um estado Islâmico ideal estão, de alguma
forma, refletindo as velhas aspirações dos judeus da diáspora por uma
terra em que eles possam ser livres para ser diferentes. Os muçulmanos,
assim como os judeus, frequentemente vestem-se de modo diferente; nós não
comemos alguns dos alimentos do país em que vivemos. Assim como os judeus
no passado, nós somos vistos como parasitas no corpo social, carregando
o peso de uma lei uniforme e irreformável, contribuindo pouco,
conspirando em guetos, e obscuramente indiferentes à higiene pessoal.
Os cartoons de árabes não são muito diferentes das caricaturas de judeus
nos jornais alemães do período nazista. Nos anos 30, estas imagens
garantiram que poucos tivessem a coragem de falar em público a respeito
das possíveis consequências daquela demonização, assim como poucos
hoje em dia estão realmente pensando sobre a retórica anti-muçulmana
dos partidos da extrema direita em toda Europa. Muçulmanos em geral, e
árabes em particular, tornaram-se a nova versão dos 'outros'.
Quando eu encontrei o presidente Bush no ano passado, eu lhe dei dois
livros. O primeiro foi "The Essential Koran" (O Essencial do
Alcorão), traduzido por Thomas Cleary. O segundo foi uma outra tradução
do Cleary, "Thunder in the Sky: Secrets of the Acquisition and Use
of Power" ("Trovão no Céu: Os Segredos da Aquisição e Uso
do Poder"), escrito por um antigo sábio chinês, em que ele
reflete sobre os valores universais daquele outro grande povo.
Eu o fiz porque, como americano, enraizado na melhor tradição
ocidental, e um muçulmano convertido que encontra muita profundidade na
filosofia chinesa, eu acredito que a tese de Huntington, de que as três
grandes civilizações entrarão inevitavelmente em choque, não passa
de uma mentira. Cada civilização fala com suas muitas vozes; o melhor
de cada uma tem muito em comum com as demais. Não apenas as nossas
civilizações podem co-existir em suas respectivas partes do mundo, mas
também co-existir no coração do indivíduo, tal como acontece comigo.
Nós podemos enriquecer um ao outro se escolhermos abraçar nossa
humanidade essencial; mas nós também podemos destruir o mundo se
escolhermos enfatizar nossas diferenças.
Texto original: "Islam Has a Progressive Tradition Too" do
sheikh Hamza Yusuf, publicado originalmente no jornal inglês
"The
Guardian" em 19 de Junho de 2002.
Traduzido por
Marilene da Costa, brasileira convertida ao Islã, formada em
Desenvolvimento Internacional pela Universidade de Harvard.
O sheikh Hamza Yusuf é americano, oriundo de uma típica família
americana de classe média.
Ele se converteu ao Islã aos 17 anos, se formou em
Teologia Islâmica nos Emirados Árabes e viajou pelo Oriente Médio
para complementar seus estudos, sendo orientado pelos melhores sheikhs
da atualidade.
É diretor
e co-fundador do
Instituto Zaytouna, nos EUA.
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