A Guerra e as Massas


 

A importância dada à Guerra Civil americana é em geral tributada à mania dos americanos de olhar para o próprio umbigo e desprezar a história universal.

Mania americana à parte, a Guerra da Secessão tem uma importância inegável na história mundial, e não só na militar, porque inaugura um novo tipo de guerra.

Antes dela as guerras eram coisas para profissionais, em geral voltadas apenas para questões estratégicas, no máximo admitindo uma ou outra idiossincrasia nacional. A Guerra Civil americana inaugurou a entrada das massas na guerra e, com elas,  a necessária motivação ideológica para legitimar a racionalizar o conflito.

As velhas batalhas entre as nações européias eram decididas por elegantes aristocratas que invocavam disputas sobre direitos hereditários e buscavam sua legitimidade em árvores genealógicas. Napoleão começou a mudar isto ampliando muito seu exército, dando uma certa aspiração ideológica à motivação da soldadesca, substituindo a aristocrática cavalaria pela popular infantaria e pela burguesa artilharia.

Mas a Guerra de Secessão foi o primeiro conflito em escala industrial, e industrial não apenas quanto ao equipamento, mas à mentalidade. Em primeiro lugar foi uma guerra na qual as tropas profissionais cediam lugar aos conscritos iniciando o terror do alistamento militar obrigatório em massa.

Em segundo lugar prendia-se a um rígido sistema de emprego de tropas, cronogramas de aplicação, racionalização dos esforços e, sobretudo, a obsessão de dar um ritmo preciso a todos os movimentos.  Kissinger afirma que uma das maiores causas da 1ª Grande Guerra foi a autonomia de decisão militar, imposta por uma necessidade das planilhas de mobilização. A guerra em escala industrial exigia uma disciplina fabril para a qual as discussões políticas eram um empecilho retardatário que poderia ser fatal.

A Guerra Civil americana também inaugurou todo um novo glossário não só inexistente mas impossível antes. Uma destas concepções foi a noção de Guerra Total, ou seja um conflito que só poderia ser resolvido pela aniquilação do adversário, e sua versão mais branda mas igualmente cruel da rendição incondicional.

Mas talvez a mais importantes das mudanças na arte de matar inaugurada pela era industrial é a ideologização dos conflitos. No Ancient Régime a guerra era uma ação de mercenário, ou pelo menos profissionais, que pouco se importavam com as questões de legitimidade heráldica que os faziam lutar.

Mas desde Napoleão o motivo pelo qual se lutava ia se tornando cada vez mais importante.

Clausewitz descobriu a importância desta motivação entre os soldados, mas só muito depois dele a ideologização das guerras ganhou importância, em especial na 2ª Guerra onde o conflito ideológico era, caso raro, real e não mera racionalização.

Eric Hobsbawn em A Era dos Extremos (Companhia das Letras, 99, 600 p.) destaca o paradoxo que foi a democracia que inventou este tipo de guerra.

Nos regimes democráticos a guerra precisa da aprovação popular e o meio mais fácil de obter isto é demonizar o adversário.

Todas as guerras desde então precisaram ser colocadas em um plano de luta do Bem contra o Mal para conseguir amparo popular. O amplo suporte popular a Reagan em sua “cruzada anti-comunista” em parte só pode ser bem sucedido pela demagógica eficiência com a qual ele conseguiu sensibilizar a opinião pública americana.

Sem a força deste apelo jamais ele teria conseguido ampliar os gastos militares em um sociedade ainda traumatizada pelo Vietnã. Só a força desta crença permitiu que se sobrevivesse aos escândalos envolvendo a CIA e métodos muito questionáveis para quem se propunha a ser o Exército do Bem.

A crueldade da terrível máquina de matar que tornaram-se as forças armadas modernas só poderia ser suportada por um amplo esforço ideológico de mobilizar as massas contra os inimigos. Até mesmo carnificinas desnecessárias e terríveis como a perpetrada pelos americanos contra Hiroshima e Nagasaki conseguiram suporte popular das nações criminosas.  Ainda hoje não se fez uma revisão adequada da deflagração da Era Atômica, cada dia mais injustificada como esclarecem um número crescente de pesquisas na área. Isto demonstra o quanto este efeito demonizador persiste no tempo e pode ter efeitos desconhecidos.

 

Texto de Alexandre Gomes (Hilal Iskandar), jornalista, convertido ao Islã em janeiro de 1995.

 

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