Modernos, Modernistas e Modernosos



 

Ninguém, ou quase ninguém, pode ser contra o progresso, e qualquer luta contra a modernidade está fadada pela história ao fracasso. Desta constatação verdadeira se extraem muitos corolários absolutamente falsos, todos eles baseados numa inevitável supremacia do novo, racionalizada pela crença do homem moderno de que “tudo que é novo é bom”.  A publicidade captou muito bem esta sensação, tanto que rotineiramente tenta nos empurrar produtos - muitas vezes inúteis - sob o argumento de que são “modernos”, utilizam “a mais nova tecnologia”, representam “um avanço em relação ao que existia antes”. Esta feitichização do “moderno” está profundamente arraigada nas mentalidades contemporâneas de forma a se tornar mais ou menos automático a associação entre “ser moderno” e  “ser bom”.

A ideologia “modernista” organiza o mundo segundo esta linha de valor muito clara, ainda que implícita, centrando-se da dualidade Moderno/Antigo em substituição ao Bom/Mau.

A moralidade decorrente desta cosmo visão só poderia ser fluida, porque o que ontem era correto hoje se torna errado porque já se tornou antigo, já foi superado pelos novos acontecimentos. No limite, esta moralidade cotidianamente superada por si mesma equivale a moralidade nenhuma e a Ética só passa a fazer sentido enquanto está na moda, sendo como a maior parte dos produtos espirituais da modernidade, pouco mais que um rótulo vazio repetido à exaustão.

A essência da modernidade modernista é como a essência do Tônico Bungay de Wells (1) : um produto sem qualquer qualidade mas que é comprado à exaustão devido à publicidade massiva e multiplicado em mil produtos diferentes, alguns dos quais sem a menor relação com a panacéia original. A metáfora, por sinal, é do próprio Wells que tinha a exata intenção de ironizar esta imagem peculiar da ciência transformada em superstição publicitária para alardear produtos de utilidade nula ou duvidosa.  Como ideologia que é, esta visão contamina todo o conhecimento do ser humano e acaba se infundindo até mesmo em áreas como a epistemologia, como demonstrou recentemente o episódio Sokal (2) - que originou o livro Imposturas Intelectuais - no qual fica evidente a noção de que basta ser moderno, basta estar sintonizado com as últimas descobertas científicas para fazer sucesso na comunidade acadêmica, ainda que não se tenha nada a dizer.

Em um processo mais ou menos homólogo ao que Edward Said identifica em “O Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente” e “Cultura e Imperialismo”(3), criou-se um discurso acadêmico em torno da modernidade que age coercitivamente para impor uma pré-noção segundo a qual a última teoria sempre será melhor que a anterior, pelo simples fato de ser nova e que qualquer texto com mais de uma década está fatalmente superado.  Se até a Torre de Marfim da Academia é invadida pelos “modernismos”, o que não se dirá da mídia. Manuais de Jornalismo da década de 40 já alertavam para o fato que inovações tecnológicas estão entre os principais assuntos que despertam interesse no leitor. Até aí não há problema, o problema é a generalização deste conceito e a sua caracterização como elemento organizar central de uma visão de mundo no qual tudo que é novo é necessariamente melhor que o que é velho.

A primeira conseqüência desta visão alucinante do mundo moderno é a suprema relatividade de tudo, a segunda é a sensação de impotência do homem frente a uma ciência mistificada e feitichizada. Da ambição iluminista de assegurar ao homem o supremo controle sobre a natureza e sobre si mesmo se produziu o contrário, um homem escravo de um processo criado por ele, mas que - justamente devido a esta mistificação, que Garaudy chama de cientificismo (4) - ele julga onipotente e, paradoxalmente, transcendente.

Enfim, do esforço iluminista de conter ou assassinar Deus, criou-se uma idolatria da ciência transformada em ideologia, fetiche de uma sociedade que já não é mais capaz de perceber como produto seu a algo que idolatra.  Huxley parece ter percebido isto com clareza ainda na década de 30 (5) e entendido que uma das principais conseqüências da construção de uma Utopia modernista seria o próprio sufocamento da ciência e a sua substituição por um simulacro de natureza ideológico-religiosa. Diz o Dirigente Mundial Mustafá Mond à página 278 do Brave New World, tentando explicar ao Selvagem os sacrifícios necessários à estabilidade social e emocional: “esse é outro item do preço da estabilidade. Não é a arte a única incompatível com a felicidade; a ciência também o é; temos de mantê-la cuidadosamente acorrentada e amordaçada”. Quando questionado sobre o axioma hipnopédico de que “a ciência é tudo”, o cínico dirigente esclarece: “toda a nossa ciência não passa de um livro de cozinha, com uma teoria ortodoxa de culinária que não se admite ser posta em questão, e uma lista de receitas que não deve ser aumentada”.

(1) O texto de Wells está disponível na íntegra na Internet (em inglês) nos endereços:

ftp://uiarchive.cso.uiuc.edu/pub/etext/gutenberg/etext96/tonob10.txt e

http://www.literature.org/authors/wells-herbert-george/tono-bungay/

(2) Para saber mais sobre o assunto: Sokal, Alan e Bricmont, Jean - Imposturas Intelectuais, Record, Rio de Janeiro, 1998. Há uma entrevista em português com o autor, disponível na Internet na página: http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/entrevista_USP.html, que também inclui links para o artigo original e suas repercussões na mídia

(3) Ambos os textos foram editados em português pela Companhia das Letras (www.companhiadasletras.com.br)

(4) Garaudy, Roger - Apelo aos Vivos, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981, páginas 44-58.

(5) Huxley, Aldous - Admirável Mundo Novo, Bradil, Rio de Janeiro, 1969, páginas 269-294

 

Texto de Alexandre Gomes (Hilal Iskandar), jornalista, convertido ao Islã em janeiro de 1995.

 

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