Kosovo: Onde Estavam os Muçulmanos?



 

Imagine que o ano é 2100, muito depois de todos estarmos mortos. Um menino está estudando história islâmica do último século na escola. Ele encontra eventos extremamente inquietantes que aconteceram no fim daquele século. Uma área que era o lar de dois milhões de pessoas foi transformada em uma terra não cultivada e quase vazia em questões de dias. Assassinatos, expulsões de lares, desonra de mulheres muçulmanas aconteceram em uma escala sem precedentes. Foi a continuação de uma agressão que começou na vizinha Bósnia alguns anos antes. Lá assassinatos continuaram por quatro longos anos, no fim do qual grandes poderes, posando de mediadores, transformaram a área em suas colônias. O fato mais inquietante é que não foram exércitos muçulmanos que lutaram e perderam; foram simplesmente batalhas unilaterais com exércitos de assassinos, estupradores e facínoras vitimando pessoas inocentes e indefesas.

Onde estavam os muçulmanos, ele se questiona? Ele descobre que apesar de um esforço bem-sucedido de seus adversários para reduzir seu número através do controle de natalidade, ainda existiam 1.2 bilhões deles no mundo. Eles estavam em todos os continentes, em todos os países. Mais de 50 países no mundo tinham populações de maioria muçulmana e governantes muçulmanos. Eles não tinham exércitos ou armas? De fato, eles tinham grandes exércitos e muito armamento. Um país tinha até armamento nuclear e tinha desenvolvido com sucesso mísseis balísticos que podiam atingir alvos distantes. Outro país islâmico com um grande exército estava justamente próximo à área em conflito. Alguns dos países eram muito ricos. Juntos, eles teriam recursos suficientes para parar as atrocidades.

Talvez eles não tivessem recebido as notícias dos eventos trágicos. De fato, eles tinham bons equipamentos de comunicação. Embora eles não os controlassem realmente e aqueles que os controlavam os usassem para colorir e distorcer muito as coisas, ainda assim muçulmanos em todo lugar foram capazes de ouvir e ver os horrores enfrentados por seus irmãos e irmãs.  Eles viram suas dificuldades, eles ouviram seus choros, mas nenhum soldado se moveu do mundo islâmico para ajudar aqueles cujas vidas, honras e propriedades estavam sendo destruídas simplesmente por que eles eram muçulmanos.

Talvez eles tivessem se tornado totalmente indiferentes às dificuldades de seus companheiros. Talvez eles tivessem perdido sua fé - não, perdido suas almas - portanto eles simplesmente não se importavam. De fato, apesar de todos os problemas, indivíduos muçulmanos de todo mundo estavam profundamente preocupados com seus companheiros. Eles falavam sobre eles. Angariavam dinheiro para eles. Oravam por eles. Eles desesperadamente pediam a quem quer que eles julgassem que pudesse ajudar.

Então o que estava acontecendo? O estudante está perplexo. Enquanto ele continua a investigar através dos registros históricos, ele encontra algo curioso. Enquanto os massacres continuavam em Kosovo, o grande exército da Turquia estava ocupado atacando muçulmanos curdos. Nem os turcos e nem os curdos pensaram que eles poderiam estar enfrentando os sérvios, que estavam brutalizando os muçulmanos na Bósnia e então em Kosovo, ao invés de estar lutando entre si. Não muito antes disto, dois grandes países islâmicos, Irã e Iraque, lutaram uma guerra de uma década que matou e feriu milhões e custou bilhões. Ambos declararam Israel como seu inimigo mas lutaram entre si.

Seus inimigos tinham certamente feito a parte deles acendendo as chamas daquelas guerras cinematográficas, mas eles tentaram isto ao longo da história. O desenvolvimento intrigante que facilitou este fiasco foi uma estranha ideologia nova que invadiu o mundo muçulmano. A ideologia devastante era a de nação-estado. De acordo com ela cada país muçulmano era uma nação independente. E assim eles se tornaram, cada um com sua própria bandeira nacional, seu próprio hino, seus próprios feriados nacionais e interesses nacionais. Como os governantes muçulmanos detinham legitimidade a partir do conceito de nação-estado, eles deviam lealdade à ela também - quando não deviam lealdade a seus senhores estrangeiros. Na sala do poder, a "ummah" (nação islâmica) morreu. Os líderes muçulmanos falavam sobre a "ummah" mas apenas como uma entidade remota, cerimonial. Os governos e exércitos estavam lá para proteger as fronteiras e interesses nacionais; ninguém cuidava das fronteiras e dos interesses da "ummah".

Os assassinatos, incêndios criminosos e desonras das muçulmanas em Kashimir não eram do interesse de ninguém exceto do Paquistão; e isto apenas porque a área era uma fonte estratégica de água do Paquistão. Se não fôsse pelos "interesses nacionais", o Paquistão não teria tido nada a ver com isto também. A brutalização dos muçulmanos na Palestina não era interesse de ninguém exceto dos próprios palestinos. Até Jerusalém e Al-Aqsa tinham se tornado problemas palestinos. A Bósnia e Kosovo não eram responsabilidade de ninguém, porque eles não existiam nos novos mapas dos interesses nacionais.

Foi uma ideologia bizarra, exportada por poderes coloniais de forma que seu controle permaneceria forte mesmo após terem formalmente entregue suas colônias. Mas naqueles dias estranhos pessoas normalmente tinham uma ou duas reações para praticamente tudo que vinha de seus antigos senhores coloniais: ou eles davam as boas-vindas, pensando que traria progresso e felicidade, ou se resignavam supondo que era inevitável. Entretanto, a ideologia de nação-estado era exatamente oposta à idéia islâmica de "ummah", e a vida era confusa entre conceitos conflitantes. O "hajj" simbolizava a dicotomia. Era uma recordação anual de que muçulmanos eram um só povo, com crentes de todo o mundo usando a mesma roupa de duas peças, circumbulando a Caaba, fazendo o mesmo compromisso "Ó Allah aqui estou". Tinha também se tornado a recordação do pertence mais importante do peregrino: seu passaporte. Sem aquele certificado de pertencer à uma nação-estado ninguém podia realizar o "hajj" ou mesmo se deslocar de um ponto a outro na terra sagrada.

O estudante finalmente compreende a armadilha ideológica que garantiu as tragédias da Bósnia e Kosovo. Mas ele não pode entender porque os muçulmanos daquela época se permitiram ser enganados. Eles não se lembraram da declaração corânica, "os crentes são uma única irmandade" (surata Al-Hujarat 49:10)?  Eles não se lembraram da ordem corânica "Segurem juntos a corda que Allah estendeu a vocês e não disputem entre si" (Al-Imran, 3:103)? Eles não se lembraram do "hadith" "muçulmanos são um só corpo. Se uma parte do corpo está sofrendo todo o corpo sente dor" ? Eles não se lembraram que a idéia devastante de nações-estados era exatamente a idéia de criar divisões permanentes na "ummah" ? Eles não viram que enquanto eles sofriam sob o jugo desta ideologia importada, a Europa, que a inventou, estava quebrando as barreiras nacionais, e evoluindo para uma União Européia? O que estava se passando em suas mentes ? Por que eles se permitiram ser aprisionados na gaiola do nacionalismo ?

Ele desiste. A história é muito cheia de intrigas!

 

Texto de Khalid Baig. Khalid Baig é o editor do Albalagh, site islâmico onde este texto foi inicialmente apresentado e foi traduzido com permissão do autor. 

 

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