O Levante dos Malês: Uma Discussão dos Conceitos Religiosos


 

  Introdução:  

            Este artigo visa a  abordagem dos conceitos e práticas religiosas detectados no Levante dos Malês e atribuídos à influência do Islã na África, à partir de uma comparação com os ensinamentos islâmicos em sua forma original.

 A idéia inicial era a de abordar o Levante dos Malês utilizando a bibliografia tradicional, mas ao detectar a atribuição errônea de determinados conceitos ou práticas ao Islã por parte de autores como João José dos Reis e Arthur Ramos por exemplo, considerei oportuna a sua discussão.

A interpretação inadequada destes conceitos leva à precipitação e superficialidade na análise de fatos históricos e até mesmo a erros conceituais básicos, que prejudicam a qualidade de um estudo mais profundo.

A intenção deste artigo é, portanto, rever noções e fatos tidos como verdadeiros em relação à prática islâmica em geral e dos malês em particular, e tentar demonstrar que tais noções são no mínimo reducionistas.  

  Discussão dos Conceitos Básicos:  

Um dos procedimentos mais comuns entre os autores  foi valer-se de trechos de traduções do Alcorão para exemplificar determinados conceitos.  Entretanto, para os muçulmanos as muitas traduções não são consideradas Alcorão, mas significados do mesmo, muitas vezes mal traduzidos.

 A leitura do Alcorão requer uma iniciação e um preparo indispensáveis para uma melhor compreensão, especialmente no caso do leitor não-muçulmano. Tentar compreender o Alcorão baseando-se apenas na informação oral ou em passagens específicas e não em seu texto como um todo, levará o leitor despreparado a um entendimento distorcido do mesmo.

Outra característica observada nos autores estudados foi a de apresentarem costumes encontrados na comunidade muçulmana em geral como prática religiosa. Em outros casos, costumes tribais africanos foram apresentados como integrantes da religião islâmica.  

 O primeiro conceito a ser discutido é a afirmação de João José dos Reis no livro “Rebelião Escrava no Brasil” de que a não participação das mulheres nos rituais seria uma prática islâmica afirmando: “É bem conhecida a posição subalterna das mulheres no mundo islâmico...”. No trecho seguinte o autor faz referência à uma fonte que justificaria a proibição da presença das mulheres nos rituais por seu permanente estado de impureza.

Com relação à primeira afirmação, aparentemente João José dos Reis se baseou na observação de determinados hábitos culturais, que não podem ser apresentados como um conceito religioso. Embora se valendo de uma citação do Alcorão para justificar suas afirmações, a dificuldade na obtenção de uma tradução que se aproxime do significado original gera distorções.

O versículo citado em questão refere-se primeiramente à liderança familiar, masculina, que não se estende à outras esferas da vida. No trecho “...porque Alá fez uns superiores aos outros...” não significa, como aparenta na tradução, a superioridade absoluta dos homens em relação às mulheres, mas na superioridade recíproca entre homens e mulheres em determinados aspectos.

A superioridade na força física qualificaria os homens ao exercício de trabalhos mais extenuantes, o que os colocaria na posição de proteger e sustentar as mulheres. A superioridade feminina na capacidade de se dar afetivamente, qualificaria as mulheres a dar o suporte psicológico aos homens, sendo portanto, seres complementares.

A interpretação deste versículo como uma superioridade absoluta dos homens, mesmo em alguns meios islâmicos, atende a princípio aos anseios dos próprios homens e resulta também da influência inconsciente na observação da posição de inferioridade das mulheres nas comunidades muçulmanas, sem que tal fato represente um ensinamento religioso.

Quanto à proibição das mulheres participarem de rituais religiosos, simplesmente não tem fundamento nos ensinamentos islâmicos. O hábito de proibir as mulheres de se dirigir às mesquitas para as orações data da formação das primeiras comunidades muçulmanas e foi combatido e criticado pelo profeta Muhammad (SAWS),  que determinou claramente que as mulheres não deviam ser impedidas de ir ao templo orar.  A permanência deste costume não justifica a afirmação de que seja parte integrante da religião, principalmente porque varia de acordo com os hábitos de cada comunidade.

Outro dado importante é o comentário de Arthur Ramos em “Introdução à Antropologia Brasileira” em relação à circuncisão dos rapazes, prática realmente islâmica, e “a excisão do clitóris da menina” como uma assimilação feita pelos grupos Mandinga da civilização muçulmana.

É comum atribuir-se tal prática à religião islâmica. Entretanto, trata-se de um costume tribal africano que se iniciou na Eritréia pré-monoteísta e se espalhou depois para a Etiópia, Somália, Sudão,  Egito e outras regiões da África,  afetando tanto as meninas muçulmanas quanto as cristãs ou de religiões animistas, indiscriminadamente. Apesar de sua permanência, este costume contraria ensinamentos básicos da religião islâmica, que prega o prazer sexual dentro do casamento igualmente para homens e mulheres.

A questão da escravidão é um ponto fundamental a ser abordado. Os autores em geral atribuem à “guerra santa”, tradução errônea da palavra “jihad” que será analisada posteriormente, o grande número de escravos obtidos nos confrontos entre as diversas tribos africanas e que foram responsáveis pelo abastecimento de escravos para o Brasil. João José dos Reis afirma inclusive que o Islã permite a escravização de heréticos e pagãos.

Entretanto, em fontes africanas as motivações para as lutas entre as diversas tribos e grupos étnicos  são explicadas separadamente como uma demanda do tráfico de escravos e o “jihad” entre muçulmanos e não-muçulmanos.

Pode-se sugerir uma motivação alternativa que seria na realidade um amálgama das duas propostas: com a crescente demanda e lucratividade do tráfico de escravos, é sabido que existiram capturas de negros por outros negros para que fossem vendidos como escravos. É natural supor que ao "escolher" sua vítima, o captor a procurasse entre os integrantes de tribos rivais. Uma das razões para tais rivalidades era a divergência religiosa entre muçulmanos e não-muçulmanos, dando suporte portanto para a crença de que o "jihad" era a motivação principal para tais capturas.

É importante observar que se fossem considerados estritamente os valores islâmicos nestes conflitos, os prisioneiros de guerra não poderiam ser comercializados como escravos. Existe proibição clara com relação a comercialização de homens livres, embora frequentemente esta proibição após a morte do profeta Muhammad (SAWS) tenha sido desobedecida ou ignorada.

Os cativos de guerra devem ficar sob custódia dos muçulmanos sendo libertados através de pagamento de resgate, troca de prisioneiros ou por generosidade ao fim do conflito. Só podem ser feitos prisioneiros entre homens e mulheres que estiverem no campo de batalha, não sendo permitida a captura dos que se retiram para suas casas ou templos.

O conceito de “jihad” é igualmente fundamental nesta discussão. Ao contrário de Arthur Ramos, João José dos Reis não compartilha das teorias “jihadistas”  que afirmam que os malês organizaram sua rebelião com o propósito de  repetir uma “guerra santa” na Bahia, lutando indiscriminadamente contra africanos, brancos e crioulos “pagãos”.  Como afirma João José dos Reis, a presença de escravos não-islamizados na luta demonstra que esta intenção não existia e que o objetivo maior era a luta pela liberdade.

Entretanto, o autor se apega à definição de “jihad” como “guerra santa” e é neste aspecto que comete o equívoco de solidificar o  conceito de “jihad” em forma diferente da original.

A doutrina clássica de “jihad” foi desenvolvida por juristas muçulmanos por volta de 750 da Era Comum no período Abássida, e atendia às condições de conflito existente entre o Estado Islâmico e os impérios Persa e Bizantino. Visava legitimar as ambições expansionistas dos governantes muçulmanos de então e tem persistido ao longo de séculos com alterações pequenas e esporádicas, provavelmente porque continua útil politicamente, mas sua formulação é posterior à formação da primeira comunidade muçulmana e difere do conceito de “jihad” do Islã original, estabelecido entre os anos de 610 e 632 da Era Comum.

“Jihad” significa na realidade “esforço no caminho de Deus” e se divide em grande e pequeno “jihad”. O grande “jihad” é o esforço individual para superar as barreiras eventualmente existentes para o exercício da prática religiosa e tem sempre um caráter individual. O pequeno “jihad”, é o direito de defesa empreendido pelo Estado islâmico. A doutrina clássica de “guerra santa” desenvolvida posteriormente é uma distorção do conceito de pequeno “jihad”.

Os autores em geral admitem uma espécie de sincretismo entre o Islã e as religiões africanas originais, motivado inclusive por razões políticas, e reconhecem que a penetração da crença islâmica se deu em nível diferenciado entre os diversos povos africanos.

Consideram que a assimilação do Islã entre os escravos no Brasil se deu em alguns casos de forma superficial, admitindo que os líderes do movimento talvez possuíssem um conhecimento maior, adquirido provavelmente quando ainda estavam em solo africano.

Afirmam que os malês mais velhos se dedicavam a passar seus ensinamentos apesar das dificuldades impostas pela escravidão e que muitos dos escravos que participaram da rebelião, tinham adotado a postura malê por identificarem nela uma atitude política, sem se preocupar em uma avaliação mais profunda da questão religiosa.

Apesar de todas estas análises, verifica-se que encontram dificuldade em estabelecer os limites destas trocas culturais e que tendem a considerar a maioria  das atitudes adotadas pelos malês no campo religioso e social, como oriundas do Islã. Tal dificuldade é compreensível pelo fato de, na África principalmente, estas trocas culturais terem se enraizado de tal maneira  que não se distinguem claramente.

Mas se deve também, ao desconhecimento dos conceitos islâmicos por parte destes autores. O Islã quando alcançou a África já havia perdido parte de sua forma original, com a manipulação de conceitos teológicos com fins claramente políticos e um retorno por parte dos muçulmanos à práticas consideradas pré-islâmicas, tais como: a escravidão e a reclusão absoluta das mulheres.

Sendo assim, os povos africanos ao entrarem em contato com o Islã já o receberam de forma adulterada, tendo provavelmente incorporado tais alterações como parte integrante da religião. Este fato associado à manutenção e incorporação de costumes tribais foram, ao que parece, determinantes no surgimento de uma comunidade muçulmana com características próprias diferenciadas das comunidades originais.

Deve-se levar em conta também de que as circunstâncias da escravidão no Brasil interferiram provavelmente no estabelecimento de novos comportamentos visando a sobrevivência em situação tão adversa.

A influência do Islã na cultura africana é inegável e pode ser constatada através de comportamentos específicos dos escravos malês. A mais marcante seria a rebeldia constante contra a condição de escravo que sempre os caracterizou. Não que os escravos não-islamizados aceitassem passivamente a escravidão, mas diferiam muitas vezes na maneira de resistir a ela.

Esta rebeldia, se analisada pelo âmbito religioso, teria origem na crença de todo muçulmano de que deve se submeter somente a Deus. Dentro desta perspectiva, seria mais digno morrer lutando para ser um homem livre que viver como escravo.

O exemplo de Bilal, escravo abissínio que se tornou posteriormente o primeiro “muezzin” da comunidade muçulmana, deve ter influenciado profundamente os negros islamizados, a ponto de ser citado pelo líder do levante malê, Licutan.

Bilal teria se convertido ao Islã ainda como escravo. Seu amo era um dos mais ferrenhos combatentes da primeira geração de muçulmanos e ao tomar conhecimento de sua conversão, passou a torturá-lo para que renunciasse à sua crença. Quando estava quase morto foi comprado por um dos primeiros muçulmanos e libertado, tendo alcançado posição de destaque na comunidade muçulmana.

É significativo que Licutan tenha dito se chamar Bilal em seu interrogatório. Se a afirmação for verdadeira, indica a importância que os negros africanos atribuíam a figura deste escravo que se tornou um dos primeiros líderes muçulmanos e companheiro fiel do profeta Muhamad (SAWS). Se a afirmação teve caráter apenas simbólico, retrata igualmente o significado da opção pela morte digna em confronto com uma vida de escravidão.  

  Considerações Finais:  

Este artigo não teve a pretensão de contestar os fatos históricos apresentados pelos autores citados, mas propor uma discussão de algumas noções e afirmações relativas à religião islâmica que não correspondem à realidade.

Apesar do trabalho de coleta de dados no que se refere ao Levante dos Malês,  ter se revelado exaustivo, os autores muitas vezes se deixaram trair pelos seus (pré)conceitos na análise de fatos e circunstâncias.

Ao repetir informações distorcidas, embora provavelmente não tenham tido esta intenção, contribuíram para a difusão e solidificação de idéias errôneas nos meios acadêmicos.

Foi o objetivo deste artigo demonstrar o quanto o preconceito e a desinformação podem contribuir para o prejuízo de uma análise histórica, distorcendo conceitos e atribuindo aos fatos motivações inexistentes ou possivelmente de origem diversa das apresentadas.

As implicações religiosas e culturais do Levante dos Malês é assunto apaixonante e que ainda merece um estudo mais aprofundado. É principalmente nos seus aspectos psicológicos, que a meu ver, se encontra a marca da influência religiosa do Islã em sua forma mais pura.

 

Elaborado por Maria C. Moreira, webmistress do Islamic Chat.

 

 

Esse artigo foi inicialmente elaborado para a disciplina de História do Brasil no curso de História da UERJ, recebendo nota máxima. Foi apresentado e aprovado para publicação na Klepsidra: Revista Virtual de História, ISSN 1677-8944, Nº. 21, 2004.

Foi posteriormente incluído também no banco de dados da Universidade de La Rioja - Espanha - como referência para pesquisa sobre o levante dos malês.

 

 

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