O SOFRIMENTO  DAS MULHERES NO VELHO TESTAMENTO

Por Shabir Ally

 

Traduzido por Hasina Abdu e revisado por Mônica Muniz

 


PREFÁCIO DO AUTOR

 

Este ensaio foi escrito para um leitor não-muçulmano, mas penso que os muçulmanos também se beneficiarão com a sua leitura.  Por muito tempo, temos assistido a uma interpretação errônea do Islã pela mídia. Como resultado desta falsa imagem do Islã, muitos no Ocidente são levados a acreditar que o Islã oprime as mulheres. O objetivo desta modesta contribuição é mostrar que é a  tradição judaico-cristã, e não o Islã, quem realmente inferioriza a mulher. O Islã eleva a condição da mulher. O Alcorão dissipa as falsas idéias sobre a mulher descritas na Bíblia.

 

   Eu espero que os fatos aqui descritos sejam devidamente considerados. Geralmente, é difícil ler algo que parece apresentar uma conclusão contrária àquilo em que acreditamos. Entretanto, peço aos leitores que considerem todos os fatos e cheguem às suas próprias conclusões.

 

                        SHABIR ALLY

 


 

 

O SOFRIMENTO  DAS MULHERES NO VELHO TESTAMENTO

 

     A Bíblia é extremamente tendenciosa em relação à mulher. Desde o começo somos informados de que não existe lugar para a mulher no plano de Deus, e que ela só foi criada para satisfazer as necessidades do homem. Somente Adão foi criado à semelhança de Deus; e Eva  tornou-se cúmplice de Satanás ao persuadir Adão,  de quem o Diabo não se atreve a se aproximar. Temos que lembrar que a Bíblia foi escrita por homens mais interessados em nos mostrar suas glórias do que nos contar o que aconteceu exatamente. Tendo isto em mente, examinaremos a história de Sansão e veremos como a sua primeira mulher é acusada injustamente, e como Sansão, apesar dos crimes horríveis cometidos, é inocente. Este é o padrão comum das narrativas bíblicas: no relacionamento marido/mulher, o homem é inocente, independentemente dos seus atos. As violações contra a mulher são ignoradas, mas nomes como Dalila são mencionados para nos lembrar da traição da mulher, a qual é apresentada desde o começo da Bíblia.

 

            A história da criação é alterada em favor do homem. Em Gênesis, lemos que depois de criar Adão, Deus decidiu “criar alguém que o ajudasse” (Gen. 2:18). Deus então criou várias criaturas e as levou a Adão.

 

            `Mas Adão não achou alguém que o ajudasse’ (Gen. 2:19-20). Então Deus criou Eva. Isto claramente indica que se Adão tivesse achado uma das outras criaturas como alguém que pudesse ajudá-lo, Deus não teria criado Eva. Eva, portanto, não tem valor nenhum no plano de Deus. Ela foi criada para ser ajudante de Adão, e não sua parceira ou mulher. Este é o começo da história da sujeição da mulher na Bíblia. Mais tarde, Paulo recorda que o homem não foi criado para a mulher, mas que a mulher foi criada para o homem (1 Cor. 11:9). Paulo foi talvez o primeiro a usar esta expressão para se referir ao relacionamento entre o homem e a mulher, mas uma leitura do Velho Testamento nos mostra que esta era uma noção predominante na história israelita. Como John Shelby Spong, Bispo de Newark, se expressou, `As mulheres de Israel só tinham uma relação com Deus enquanto mantivessem um relacionamento com seus homens…. A mulher tinha poucos direitos naquela sociedade.’[1]

 

    A idéia do papel subordinado da mulher se origina da interpretação errônea do Gênesis. Harold Bloom, no seu livro ‘The Book of  J’, assinala que a palavra usada no texto hebreu não significa “ajudasse (Gen. 2:18)”, como descrito na versão Bíblica do Rei James, mas “igual a ele” ou “ao lado”[2]. O significado original tornou-se obscuro não só na Bíblia do Rei James, mas no próprio texto Hebreu. Tendo em vista que a Bíblia se auto-interpreta, esta passagem sempre tem sido interpretada com base em outras passagens contendo fortes indicações da superioridade masculina. Uma destas passagens é a  que Paulo interpreta como evidência que somente o homem, e não a mulher, foi criado à imagem de Deus (1Cor. 11:7, cf. Gen. 1:27). Esta interpretação valoriza o homem e rebaixa a mulher a uma posição inferior.  O Bispo Spong nos lembra que “De fato, a mulher foi considerada uma propriedade do homem”. Ele assinala que em Êxodo. 20, a mulher é mencionada “no mesmo nível que o do boi”, sugerindo que os dois pertenciam ao homem.

 

            Depois da criação, o próximo grande evento na Bíblia é a queda, que também é descrito no sentido de inferiorizar a mulher. Eva é mostrada como a causa da queda de Adão[3]. Isto deu a Paulo a oportunidade de afirmar no Novo Testamento: “Adão não foi enganado e sim a mulher, que sendo iludida, transgrediu.” (1 Tim. 2:14). Isto também deu a Tertuliano a oportunidade de alertar suas “irmãs em Cristo” que mesmo as melhores entre elas eram somente outras Evas: “a entrada do diabo…. a que persuadiu Adão que o diabo não se atreveria a atacar… Vocês sabem que cada uma de vocês é uma Eva?”[4] Todas as mulheres devem portanto continuar aceitando esta acusação e o sentimento de culpa. A culpa é um dos instrumentos principais usados na opressão da mulher, lembrando-as de que são responsáveis por causar todos os tipos de problemas no mundo, e que não devem nem se atrever a reclamar.

 

     Podemos reduzir o impacto desta narração sobre a imagem da mulher se lembrarmo-nos de que a Bíblia foi escrita por homens que estavam mais interessados em afirmar sua superioridade masculina, e não em relatar os fatos verdadeiros. Elsie Thomas Culver nos lembra que devemos, ao ler qualquer passagem na Bíblia, perguntar quem escreveu a história, quando e porque; também devemos lembrar que “é muito provável que tenha sido um sacerdote que tenha editado o texto”[5]. O princípio de Northrop Frye é pertinente: “A Bíblia é obviamente um livro partidário: A verdade é a que o autor julga ser a verdade. Se existe algum fato historicamente verdadeiro na Bíblia, este fato não foi incluído por ser um fato histórico, e sim por outras razões.”[6]. Com este princípio em mente, podemos superar as interpretações masculinas e tentar entender o que realmente aconteceu.

 

            Com algumas exceções, vemos que as histórias da Bíblia são narradas somente de uma perspectiva masculina. São histórias principalmente sobre homens; as mulheres são acidentais e apenas aparecem cenário das histórias como figurantes. Na história de Sansão, Dalila é a única mulher de proeminência. Isto deve ter algum significado: o mundo precisa ser lembrado da sua traição e inconveniência. A Bíblia diz ainda mais sobre esposas inoportunas: “é melhor morar no canto do sótão do que com uma mulher briguenta num casarão”(Prov. 24:24).  Elsie Culver questiona quais seriam as implicações das histórias de Sansão: “Nunca confiar numa mulher? Nunca subestimar os recursos de uma mulher? É uma paródia sobre a noção de que mulher e religião não se misturam?”(p. 27). O autor obviamente quer nos lembrar que toda mulher pode ser uma Dalila, da mesma forma que Tertuliano sugere que toda mulher é simplesmente uma outra Eva.

 

            O objetivo da história de Sansão é o de glorificar o homem. Sansão é celebrado apesar de os fatos provarem o contrário. A Bíblia também se concentra na traição de sua primeira mulher, mas uma análise dos fatos nos mostra que sua esposa agiu corretamente, considerando as circunstâncias, e o fato de que foi Sansão quem agiu impensadamente. Durante o seu casamento, Sansão apresentou um enigma aos seus convidados, apostando trinta lençóis e trinta mudas de roupa caso ninguém achasse a resposta. Os homens, sem  conseguir resolver o quebra-cabeça, ameaçam a esposa de Sansão de queimá-la e a casa de seu pai, caso não lhes dê a resposta (Juizes 14:15). É evidente que ela lhes deu a resposta sob imensa pressão. Ela é portanto inocente. Mas Sansão era muito orgulhoso, ou muito infantil, para aceitar a derrota. O seu comentário, “se vocês não tivessem pressionado minha novilha, não teriam achado a resposta (14:18)” é um insulto à sua mulher, e absolutamente injusto. Mais tarde, a vingança incontrolável de Sansão contra os filisteus porá sua esposa num perigo que ela prudentemente evita. Entretanto, o autor de Juizes não se importa com este fato. Ele se concentra em nos descrever a força de Sansão, e como ele arrasou os filisteus num grande massacre.

 

            O autor não se importa com as várias vezes em que Sansão desrespeitou a lei ou os valores morais. Para ele, estes são meros fatos mundanos para serem ignorados. Vamos analisar esses fatos mundanos. Sansão iniciou uma aposta, tendo, portanto, cometido o pecado do jogo, mas a Bíblia não o julga. Mais tarde, ele dorme com uma prostituta. Este ato, de acordo com Lev. 20:10, resulta em pena de morte, mas, novamente, a Bíblia deixa passar. O autor de Hebreus obviamente tinha acesso a todos esses fatos, e, mesmo assim, teve a audácia de proclamar Sansão como um dos que “através da fé, conquistou reinos, trabalhou pela justiça... (Heb. 11:32-33)” e de quem “o mundo não era digno”(11:38). Este mesmo homem, para o qual o mundo não era digno, queimou o rabo de trezentas raposas. Este ato desumano não é condenado em nenhum lugar na Bíblia. A história de Sansão é mais um exemplo de como a Bíblia declara a superioridade dos homens sobre mulheres, mesmo quando eles estão errados.

 

            Uma outra mulher vítima de violência é a concubina de um certo levita. A sua saga é narrada em Juizes 19:1-30. Como a esposa de Sansão, seu nome não é mencionado, e a história não é sobre ela, mas sobre a rivalidade entre as tribos de Israel. Ela é apenas acidental no meio da história. Ela e o seu marido refugiam-se à noite na casa de um bondoso  velho na cidade  de Gibeah. Os desordeiros da cidade ordenam ao anfitrião que lhes entregue o levita, para que possam fazer sexo com ele. O velho lhes implora que deixem o homem, e sugere “aqui está a minha filha, uma virgem, e a sua concubina… faça com elas o que lhes parecer melhor” (19:24). Mas a multidão não aceitou a oferta, e o sacerdote (levita), talvez em desespero, “literalmente lhes arremessou sua consorte”[7]. Eles a pegaram, fizeram sexo com ela, e abusaram dela a noite inteira; libertando-a antes do alvorecer. Ela chegou e desmaiou na entrada da casa do seu anfitrião. Este fato nos indica como o seu marido, um sacerdote, a considerava; e o autor de Juizes não parece achá-lo repugnante. A pobre mulher ali permaneceu até o seu marido descuidado sair para continuar sua viagem. Obviamente, ele não tinha intenção de procurar por ela, pois ele simplesmente “Saiu para continuar o seu caminho” (19:27).

 

 De qualquer modo, ele a encontra na entrada, e, em vez de carregá-la e mostrar compaixão, ele ordena, “Levante-se, e vamos embora”, mas ela não respondeu (19:28). Ela obviamente havia morrido (não somos informados quando), e o seu marido a corta em doze pedaços e os manda às doze tribos de Israel, para provocar uma resposta contra este grande crime.  Mas o levita não estava realmente abalado pelo crime contra a sua concubina. O crime foi contra ele. Como dito pelos comentaristas do One Volume Commentary, “O levita não estava revoltado devido à compaixão pela sua concubina, com a qual ele não se importava, mas porque sentiu que a sua dignidade e direitos de propriedade tinham sido violados”[8]. Esta história nos mostra o pouco caso dada à mulher, que caracterizava a relação marido e mulher descrita na Bíblia. É claro que esta história é um exemplo extremo, mas Tom Harpur salienta que passagens como essa podem e têm sido “usadas para justificar as mais grotescas violações” contra a mulher.[9]

 

 

            À medida em que a história continua, ela, da mesma forma que a primeira esposa de Sansão, é rapidamente esquecida. A história passa a se concentrar na necessidade de suprir a tribo de Benjamin. Os israelitas haviam declarado guerra contra Benjamin devido ao crime cometido contra o marido da concubina. Durante a luta feroz, os soldados benjamitas foram afastados e a sua cidade, queimada. Deste modo, os israelitas deliberadamente destruíram as mulheres e crianças benjamitas. Mas agora sua má-vontade repentinamente se transforma em simpatia pelos irmãos benjamitas que perderam suas esposas,

 

 Agora encontramos violações contra um outro grupo de mulheres.  Os israelitas queriam arrumar esposas para os benjamitas que sobraram—e isto tinha que ser feito a qualquer custo. Como conseqüência, uma cidade é completamente destruída, com exceção de quatrocentas virgens que são entregues aos benjamitas para serem suas esposas. Este número sendo insuficiente, outras meninas e mulheres são seqüestradas durante o festival de dança de Shiloh. E o pior é que espera-se que os pais destas meninas concordem com o seqüestro. Portanto, mais uma vez, ninguém se importa com os desejos das mulheres envolvidas na história. O que importa na Bíblia é que os homens estejam satisfeitos; não importa o que acontece com a mulher.

 

            Nós vimos que a Bíblia é extremamente tendenciosa contra a mulher. As histórias são narradas de uma perspectiva masculina, e ninguém fala sobre a condição da mulher. Ninguém lamenta a morte da pobre concubina, e o ato do marido, de cortá-la em pedaços, é uma profanação, que o autor nem se importa em mencionar. Estes modelos se repetem na Bíblia, uma história depois de outra. Do mesmo modo que Eva trai Adão no começo, as duas esposas de Sansão o traem; Rebecca faz com que Jacó engane seu pai (Gen. 27:6-13); e as esposas gentias de Salomão “desviaram seu coração na direção de outros deuses” (1 Reis 11:4). Este artigo nos mostra que se lembrarmos do fato de que os autores são homens, e terrivelmente contra mulheres, nós podemos re-interpretar essas e outras passagens, para diminuir o impacto de seus conceitos contra as mulheres. Também podemos questionar a validade histórica dos detalhes destas histórias.

NOTAS:

 

1. O Alcorão apresenta uma visão diferente da mulher: “Ó humanos, temei a vosso Senhor, que vos criou de um só ser, do qual criou a sua companheira e, de ambos fez descender inumeráveis homens e mulheres. Temei a Deus, em nome do Qual exigis os vossos direitos mútuos e reverenciais os laços de parentesco, porque Deus é Observador.” (Alcorão 4:1)

Esta referência à criação de Adão e Eva não dá uma condição secundária a Eva. Por outro lado, o versículo fala dos direitos mútuos entre marido e esposa e termina com uma advertência para sermos cuidadosos com nossa responsabilidade em relação às nossas mães.

 

2. John Shelby Spong, Vivendo em Pecado? Um Bispo Repensa a Sexualidade Humana (US Harper & Row, 1988), p 179.

 

3. Harold Bloom, O Livro de J (US: Grove Weidenfeld; Canada: General Publishing, 1990) p. 179.

 

4. Spong, pp. 125-1 26.

 

5. Aqui, de novo, o Alcorão defende a mulher: “Então, Satã lhes cochichou ... e com enganos os seduziu. E quando eles provaram do fruto da árvore manifestaram-se-lhes suas vergonhas.” (Alcorão 7:20-22).O Alcorão mostra que Satanás sussurrou a ambos. Um outro versículo indica Adão: o mal sussurrou a ele ... então ambos comeram do fruto... (Alcorão 20:120-121).Em parte alguma Eva é apontada como culpada.

 

6. Tertuliano, De Cultn Feminarum 1, 12 : Mencionado em  Elaine Pagels, Adam. Eve. and the Serpent (US: Random House, 1988) p. 63.

 

7. Elsie Thomas Culver, Women in the World of Religion (US: Doubleday, 1967) p. 16


8.Northrop Frye, The Great Code (Canada: Penguin, 1982) p. 40

 

9.      Culver, p.28.

 

10.    Ed. Charles M. Laymon, The interpreters’ One Volume Commentary on the Bible (US: Abingdon, 1971) p. 149.

 

11.    Tom Harpur, Always on Sunday (Canada: Oxford University, 1988) p. 76.

 

 

BIBLIOGRAFIA:

 

Bloom, Harold. The Book Of J. US: Grove Weidenfeld.

Canada:    General Pubiishíng, 1990.

 

Cuíver, Elsie lhornas. Women in the World of Religion.

US: Doubleday, 1967.

 

Frye, Northrop. The Great Code. Canada: Penguin, 1982.

 

Harpur, Tom. Always on Sunday. Canada: Oxford Uníversíty, 1988.

 

Laymon, Charles M, Ed. the lnterpreters’ One-Volume Commentary on the Bible. US: Abingdon, 1971.

 

Pagels, Elaine. Adam. Eve. and the Serpent. US:

Random House, 1988.

 

Spong, John Shelby. Living in Sin? A Bishop Rethinks Human Sexuality. US: Harper & Row, 1988.

 

Livro original: 'The Plight of Women In The Old Testament' de Shabir Ally. Este livro está sendo reproduzido aqui com a autorização de seu autor.

 

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