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Anatomia do Racismo
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‘Culpar a vítima’
tem sido o recurso comum dos culpados ao racionalizar e distorcer o
horror do crime em si. Sejam esposas espancadas, crianças vítimas de
abusos, ou palestinos há muito submetidos à brutalidade da horrenda
ocupação militar israelense, o primeiro (e último) recurso de
covardia está em difamar a vítima, acusando-a de ter provocado a
crueldade merecida do crime. O pré-requisito
essencial, claro, é a total desumanização das vítimas e a eliminação
de seus direitos e atributos mais básicos, assim como seus pedidos de
proteção. Inevitavelmente,
a mistura resultante da vitimização é incrementada numa etapa
posterior pela vulnerabilidade aumentada, pela distorção, e pela
exclusão da proteção de aspectos humanos e imperativos morais. Portanto, a última
explosão de confrontos entre o exército de ocupação israelense e
manifestantes civis palestinos transformou-se no campo de recreio
para a força total da "máquina giratória" israelense, no
mais deliberado, concentrado e racista exercício de fraude e desumanização
dirigido contra todo um povo. A forma mais básica
de fraude está em inventar uma simetria falsa entre o invasor e o
invadido, entre opressor e vítima. A ‘violência’ do poderoso exército
de ocupação israelense usando munição real, tanques e helicópteros
(no mínimo), é equiparada à ‘violência’ dos civis palestinos
protestando contra sua vitimização e continuada perda de direitos,
terras e vidas. Além disso,
pede-se aos palestinos que sejam dóceis, que parem com a "violência",
que ponham um fim ao cerco a Israel - como se o exército mais poderoso
da região estivesse sendo "ameaçado" pela rejeição do povo
desarmado à sua ocupação e brutalidade. A solução simples e óbvia,
é claro, é a retirada do exército e o fim da ocupação. Isto,
ironicamente, é acompanhado de uma desvalorização dos direitos e
vidas palestinos, pela tradução de nossa fraqueza objetiva na diminuição
de direitos onde o poderoso determina os parâmetros de ‘justiça’
para o fraco. A apresentação
como um todo exibe constantemente a síndrome da ‘responsabilidade do
homem branco’. Os palestinos devem ser ‘gratos’ por qualquer
‘oferta generosa’ que Israel escolha ‘garantir’ a eles,
independente da injustiça e ilegalidade flagrantes da negociação
israelense. Tanto a extrema
direita quanto a extrema esquerda em Israel (assim como nos EUA) têm
adotado esta abordagem condescendente, paternalista, para a paz –
Barak foi ‘muito longe’ em ‘oferecer’ aos palestinos quase 90%
de suas terras com algumas ‘responsabilidades’ em Jerusalém, e
aqueles palestinos ‘ingratos’ estão sendo ‘intransigentes’ e
linha-dura. Tendo
comprometido 22% da Palestina histórica, nós não fomos convidados a
ser parte da anexação ilegal de Jerusalém por Israel e de sua política
de assentamentos – isto é, uma parceria nada sagrada (profana pela)
para a violação da lei internacional e das resoluções relevantes da
ONU. Se não formos
determinados na auto-negação, se não recusarmos o papel de bons
nativos e não continuarmos rejeitando a versão unilateral israelense
de "paz", que "oferece" a nós um estadozinho
subserviente de isolados Bantustões sob o sistema de apartheid de
Israel, então seremos forçados à submissão. Afinal de contas,
se pressão, ameaça e ‘queda-de-braço’ político não funcionam, a
agressão militar absoluta pode produzir os resultados desejados – uma
vez que ‘os árabes só entendem a língua da violência.’ Táticas
instantâneas ou políticas de pânico entram no jogo com rótulos tais
como ‘terrorista’ ou ‘ditatorial’ ou palestinos ‘violentos’,
na medida em que disfarçam a realidade do desejo humano palestino de
resistir à subjugação e opressão como prova de tais distorções. Uma situação típica
é visível claramente: Arafat deve ‘controlar’ seu povo (nação de
ovelhas?) e ‘ordená-los’ que se acalmem e aceitem sua escravização
e repressão pelos israelenses, de outro modo ele não será mais um
‘parceiro da paz’ e não pode ser considerado um ‘líder.’ Ao mesmo tempo,
Israel não pode negociar com Arafat, ou com os palestinos, porque são
tradicionalmente ‘antidemocráticos’ e, portanto, não têm nada a
ver com democracias ‘civilizadas’, como a de Israel e dos Estados
Unidos. Paralelamente,
outros rótulos instantâneos e epítetos estereotipados são facilmente
lançados como um exercício conveniente para reduzir o aspecto humano
dos palestinos. Os insultos históricos
e familiares usados pelos oficiais e figuras públicas israelenses (incluindo
baratas, vermes de duas pernas, cães) foram ampliados para incluir
‘cobras’ e ‘crocodilos.’ A redução de
nossa característica humana a uma série de abstrações em nenhum
lugar é tão sinistra quanto no jogo numérico. As vítimas palestinas
do fogo israelense são fornecidas diariamente como um número ‘X’
de mortos e ‘Y’ de feridos. Seus nomes, identidades, esperanças
despedaçadas, e sonhos destruídos não são mencionados. Ausente também
estão a dor e a angústia de suas mães, seus pais, irmãs, irmãos e
outros entes queridos que terão de viver a vida com a trágica perda. A documentação
visual do assassinato a sangue-frio do menino Muhammad al-Durra destruiu
a complacência daqueles que se sentiam confortáveis com o anonimato
dos palestinos e com a invisibilidade de seu sofrimento. Mesmo assim,
diante da evidência irrefutável, a máquina de propaganda israelense
tentou distorcer a verdade. Primeiro, foi dito que ele foi morto por atiradores palestinos. Depois, que ele foi ‘pego no fogo-cruzado.’ A pior versão foi a descrição cínica do menino Muhammad como um ‘criador de casos’ ou um menino ‘malicioso’ que atraiu a morte para si mesmo – como se a resposta adequada para uma criança vivendo sua infância fôsse a morte deliberada. A última acusação envolveu uma questão: ‘O que ele
estava fazendo lá?’. A verdadeira questão deveria ter sido ‘o que
o exército israelense estava fazendo lá?’, no coração da Gaza
palestina atirando em civis, inclusive uma criança e seu pai, que foram
pegos em flagrante tentando engajar-se no ato ‘provocativo’ de fazer
compras juntos. Notem a diferença,
entretanto, quando dois agentes israelenses disfarçados, pertencendo
aos notórios esquadrões da morte israelenses, foram mortos por
manifestantes palestinos. Nenhum palestino
tentou justificar o ato. Ao contrário, ordens foram dadas para
investigar e prender os responsáveis. Afinal de contas, deve existir
algo como a lei e o processo devido. Ao contrário,
Israel deslocou seus tanques e exércitos, apertando o cerco e
estrangulando as cidades, aldeias e campos de refugiados palestinos. Então
trouxe seu helicóptero Apache e disparou sobre cidades palestinas na
mais absurda e cruel forma de punição coletiva. Sua versão dos
eventos apresentou os agentes israelenses como reservistas que por
engano ‘se desviaram’ para Ramallah e então foram ‘linchados’
pela multidão. Referências ao ‘assassinato’ , ‘sede de sangue’
e ‘selvageria’ transformaram-se na tendência verbal predominante. Embora ninguém
vá concordar com a morte dos soldados, é importante entretanto, lidar
com os fatos reais e o contexto: Ramallah, uma
cidade sob total cerco militar israelense, foi fechada a todos o
movimento de entrada e saída da cidade. Apenas uma entrada foi aberta,
inteiramente sob controle dos múltiplos pontos de checagem militar
israelenses. Portanto, ‘desviar-se’ para Ramallah iria
requerer tentativas deliberadas e repetidas exigindo tenacidade, persistência
e mesmo astúcia. Os dois agentes
israelenses foram claramente infiltrados e plantados no meio de uma
marcha de protesto no coração da cidade. A ocasião era o funeral de
um homem palestino, Issam Joudeh Hamad, de uma aldeia de Umm Safa, que
tinha sido raptado por colonos israelenses e torturado até à morte de
uma maneira horrível. São cenas e
fotografias horríveis do corpo, mais o testemunho dos médicos que o
examinaram, que se exibidas aos olhos do mundo aumentariam os pontos dos
palestinos e desumanizariam os israelenses. Algumas estações árabes
me informaram que as imagens eram tão terríveis que evitaram usá-las. A maioria das
pessoas que participaram da marcha na sitiada cidade palestina de
Ramallah conhecia a vítima, e alguns tinham visto o corpo. Os dois
agentes israelenses disfarçados que tinham se infiltrado na marcha,
foram reconhecidos pelos palestinos como membros dos ‘Esquadrões da
Morte’ que tinham sido responsáveis por assassinatos e provocações.
Apesar do fato
da polícia palestina ter tentado protegê-los, os dois foram mortos
diante das câmeras. Imediatamente
isto se tornou uma justificativa imediata para chamar todos os
palestinos de assassinos, e pela mais sistemática e venenosa campanha
de ódio na história recente. Isto também foi usado como uma
justificativa para os ataques aéreos israelenses sobre Ramallah e
outras cidades palestinas. No emocionante
apelo aos seus compatriotas (13 de outubro de 2000) para não explorar
este incidente para justificar o racismo e o ódio existentes em Israel,
o poeta israelense Yitzhak Laor documentou vários linchamentos de
palestinos pelo exército e forças de segurança israelenses. Em todos
os casos os perpetradores nunca foram punidos e nenhum ultraje moral foi
expresso pelo público israelense, menos ainda o bombardeio de cidades
israelenses! O mesmo se
aplica ao reino de terror dos colonos israelenses que atingem palestinos
em suas próprias casas e cidades, com a proteção e conluio total do
exército israelense. Apresentados
como ‘civis israelenses’ indefesos cercados pelos palestinos ‘hostis’,
a natureza sinistra e letal da violência dos colonos, como extremistas
armados em fúria, é com freqüência ignorada. A ilegalidade dos
assentamentos israelenses, o caráter fundamentalista extremista dos
colonos armados, e os atos horríveis de rapto, tortura, assassinato e
violência aleatória que são cometidos com impunidade – raramente são
mencionados. Por toda a parte, os palestinos continuam a ser
responsabilizados. O insulto mais
flagrantemente racista é o roubo israelense de nossa humanidade como
pais. Em uma tentativa de nos roubar nossos sentimentos mais básicos
por nossas crianças, nós somos acusados de ‘enviar (nossas) crianças
para a morte’, para ‘aumentar os pontos na mídia.’ O horror é
posteriormente misturado pela total e inquestionável equanimidade com a
qual este grande insulto nacional é repetido por israelenses de todas
as partes, sem qualquer distância crítica ou mesmo consciência da
enormidade de tal acusação racista. Quando crianças
palestinas se tornaram alvos dos atiradores isralenses e de outra violência
do exército, o ministro da educação não teve outra opção a não
ser fechar as escolas temporariamente, de modo a minimizar a exposição
dos estudantes em seu caminho para a escola. Isto foi
imediatamente interpretado pela máquina giratória israelense como
prova de que nós fechamos as escolas de modo a ‘liberar’ nossas
crianças para sair e ‘criar distúrbios’, obstruindo portanto o
caminho livre das balas israelenses. A segurança do
lar e as tentativas dos pais em proteger suas crianças não são nem
consideradas. A maioria das crianças foram atingidas na cabeça ou na
parte superior do corpo, principalmente com balas de alta velocidade. Os
alvos mais comuns das balas de aço revestidas de borracha foram os
olhos das crianças. A política de
atirar para matar (ou aleijar permanentemente) tem sido empregada pelo
exército israelense – clama pelas vidas de mais de 105 palestinos e
feriu mais de 3.000 (muitos dos quais com danos irreversíveis). Os
oficiais israelenses alegam que eles praticaram a moderação. Claro eles podem
fazer pior – eles podem cometer genocídio ou completar a limpeza étnica
iniciada em 1948. Ainda assim, é
a segurança de Israel que está em jogo. O poderoso
exército de ocupação de Israel encolhe-se de medo diante do clamor do
povo palestino por justiça e liberdade. O povo palestino
não precisa de segurança em sua própria terra ou em suas próprias
casas, uma vez que eles têm sido sistematicamente desumanizados pelos
seus opressores, como a merecer o que quer que aconteça a eles. Pior do que ser
‘não-existente’ (como no mito da ‘terra sem um povo para um povo
sem uma terra’ – que até Shimon Peres parece agora abraçar), nas
mentes da narrativa oficial de Israel nós agora parecemos existir em um
plano mais baixo, como espécies sub-humanas, destituídas das mais
elementares qualidades e direitos que orientam a consciência e os
valores morais da humanidade como um todo. Tudo isto para
aliviar a culpa e a responsabilidade do verdadeiro culpado. Os apologistas
da ocupação israelense devem encontrar um endereço alternativo para
culpar pelo horror infligido aos palestinos – assim, quem melhor do
que as próprias vítimas? Texto: 'Anatomy of Racism' de Hannan Ashrawi. Apresentado inicialmente no site ZNet, que autorizou a sua utilização. Traduzido por Maria Moreira e Mônica Muniz. Este artigo foi incluído simultaneamente no site 'Ibn Khaldoun - o site da História Islâmica'. Visite também neste site o artigo 'Racismo Puro e Simples' de Michael Coren.
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