As Raízes Religiosas do Conflito : Rússia e Chechênia  

 



 

Está faltando algo básico na maioria dos comentários sobre a guerra feroz da Rússia contra a secessionista República Chechena: os próprios chechenos. Enquanto muitos analistas ponderam sobre o alto custo da perseguição de Yeltsin, uma guerra impopular no Cáucaso, ou questionam como a comunidade internacional deve responder à dizimação russa de Grozny, os chechenos – que se auto-denominam os Nokhchi – aparecem como pouco mais  que uma inexplorada derrota para os russos.

Mas o que mantém um milhão de chechenos muçulmanos em sua improvável resistência à poderosa Rússia? Quais são as dimensões religiosas do conflito? Como tem o Islã – e a poderosa irmandade mística islâmica clandestina, em particular – sobrevivido lá, apesar de dois séculos de perseguição brutal czarista, soviética e agora russa? 

Enquanto a maioria dos 48 milhões de muçulmanos da antiga União Soviética ganhou independência com a dissolução da mesma em 1991, a Federação Russa continua abrigando mais de sete milhões de povos muçulmanos étnica e linguisticamente diferentes. Dois grupos destes “muçulmanos internos” – os tártaros e os chechenos – são importantes para a Federação Russa por duas razões chaves. A primeira é econômica: tanto a Chechênia quanto o Tatarstão possuem substanciais reservas de óleo, com o Tatarstão sozinho produzindo 25%  das reservas russas. A segunda razão é política: de todas as antigas repúblicas russas e autônomas, apenas os Tatarstão e a Chechênia se recusaram a ratificar o Tratado da Federação Russa de 1992 que estabeleceu a presente Federação Russa de Yeltsin. Imediatamente Moscou atacou ambas as secessões, e o caso tártaro está pendente na Corte Constitucional Russa. Na Chechênia dois anos de ameaças russas e negociações vazias terminaram com invasão em 1994.

Que a situação política na Chechênia tenha terminado em guerra não é surpresa para quem está familiarizado com a longa e sangrenta história de Moscou no norte do Cáucaso. Os povos muçulmanos desta região multi-étnica carregam uma tradição de oposição ao governo de Moscou que está entrando no terceiro século. Invariavelmente, no centro desta resistência chechena tem estado as notavelmente flexíveis, discretas e ativas politicamente, irmandades místicas islâmicas do Cáucaso.

A história da expansão russa na Caucásia – o remoto, áspero e montanhoso território entre o Mar Negro e o Cáspio que é o lar de mais de 30 grupos étnicos diferentes – começou no século dezoito com as tentativas de Catarina a Grande de anexar a região pela força. Mas os invasores russos inspiraram uma furiosa e inesperada resistência de uma ampla coalizão étnica dos muçulmanos caucasianos que se uniram em lealdade a um líder espiritual – um guerreiro muçulmano místico checheno chamado sheikh Mansur Ushurma. Declarando a resistência um “jihad”, sheikh Mansur e seus montanheses muçulmanos infligiram uma derrota avassaladora às forças czaristas no rio Sunzha em 1785 e foram por um breve período capazes de unir muito do que é o moderno Daguestão e a Chechênia sob seu governo.

O sheikh Mansur liderava um ramo da ordem sufi Naqshabndi, uma irmandade islâmica mística que se originou no século quatorze na Ásia Central. O misticismo islâmico – conhecido como Sufismo – se espalhou rapidamente entre muçulmanos e não-muçulmanos no Cáucaso e na Ásia Central, através de atividades missionárias de sábios e místicos sufis itinerantes. Estes populares sheikhs (santos, literalmente “amigos de Deus”) adquiriram reputação como milagreiros e seus túmulos frequentemente se tornaram templos (mazars) e locais de peregrinação. Até os anos 70, as autoridades soviéticas testemunharam a grande atração destes templos, listando mais de 70 “mazars” ativos no Daguestão e mais de 30 na Chechênia. Os líderes religiosos muçulmanos mais tradicionais em geral atacavam o “culto dos santos” dos sufis como sendo uma prática não-islâmica, mas desde o início no Cáucaso, o Sufismo ajudou  a atrair convertidos ao Islã em um nível popular e ofereceu uma fonte poderosa de orientação espiritual e identidade social.

Estes sheikhs sufis geralmente dirigiam organizações baseadas em clãs, com discípulos (murids) que faziam votos de obediência absoluta. Os discípulos mais antigos tinham permissão para iniciar os novos devotos na irmandade, e eram frequentemente despachados para divulgar os ensinamentos  da ordem nas aldeias mais encravadas nas montanhas. Frequentemente, “murids” carismáticos e ambiciosos formavam seus próprios ramos e sub-ramos dentro de uma ordem. Certas ordens e sub-ordens sufis estavam intimamente ligadas a grupos étnicos específicos e à uma família em particular.

“Dikhr” (recordação de Deus) é a prática ritual central da maioria das ordens sufis do Cáucaso. Esta cerimônia mística, elaborada para levar os participantes à uma união extática com Deus, envolve a repetição em grupo de uma oração especial ou de vários nomes divinos de Deus. Os Naqshbandis praticam uma forma silenciosa de “dikhr” que é fechada aos de fora, mas outras ordens algumas vezes permitiam assembléias públicas de vocais de “dikhr”.

É impossível estabelecer uma lista confiável de membros, mas uma pesquisa soviética de 1975 na Chechênia indicou que a metade da população muçulmana de lá pertencia às ordens sufis locais – um total surpreendente de mais de 300.000 “murids”. Os Naqshbandis, aos quais se uniram posteriormente a irmandade sufi Cadirita, têm dominado a vida espiritual dos muçulmanos caucasianos desde o século dezoito até o dia presente. Naturalmente discretos e disciplinados, com um amplo suporte social de base e um terreno montanhoso ameaçador, estas ordens tem se mostrado adversários formidáveis para quem quer que tenha tentado governar o Cáucaso.

Os discípulos do sheikh Mansur continuaram sua resistência contra os russos mesmo após a sua morte na prisão em 1793. Uma revolta armada em larga escala contra a ocupação russa do Daguestão e da Chechênia se reiniciou em 1824, quando uma série de líderes sufis Naqshbandis começaram uma terrível guerrilha que duraria mais de 30 anos. O mais famoso destes guerreiros sufis, o sheikh Naqshbandi Imam Shamil, estabeleceu um estado islâmico de curta duração na Chechênia e Daguestão antes de sua capitulação em 1859. Com Shamil aprisionado, os russos se deslocaram para esmagar os “muriditas” remanescentes e pacificar a região. Muitos dos seguidores de Shamil foram enforcados ou deportados, enquanto seus superiores escaparam para Meca, Medina e Turquia. Mas com a supressão dos Naqshabandis, uma nova ordem – a Cadirita – entrou na luta.

A ordem Cadirita, com suas origens no século doze em Bagdá, apareceu pela primeira vez no Cáucaso em 1861 liderada por um pastor de ovelhas daguestão chamado Kunta Haji Kishiev. Baseado na Chechênia, Kunta Haji ensinou uma prática mística que, ao contrário dos Naqshabandis, permitia o “dikhr” vocal, música extática e dança. E, a princípio, ele aconselhou a paz com os russos. Sua popularidade cresceu mas logo seus seguidores, acrescidos de muitos combatentes “murids” do antigo exército de Shamil, alarmaram os russos que o aprisionaram e exilaram em 1864. Naquele mesmo ano em Shali na Chechênia, tropas russas atiraram em mais de 4.000 “murids” Cadiritas, matando muitos e incitando uma nova onda de violência. A irmandade – cujos líderes remanescentes clamavam descendência espiritual de Kunta Haji – se tornou uma implacável oponente para os russos e firmou raízes profundas no interior da Chechênia. Junto com os rejuvenescidos Naqshbandis, os  Cadiritas se rebelaram contra os Romanovs em 1865, 1877, 1879 e 1890 e persistentemente incomodaram o governo czarista no Cáucaso ao longo da Revolução Bolchevique.

Os anos revolucionários foram especialmente sangrentos no Daguestão e Chechênia. Os Cadiritas, e o movimento Naqshbandi liderado pelo sheikh Uzun Haji lutaram por oito anos contra os exércitos Branco e Vermelho para criar um “Emirado Caucasiano do Norte”. O religioso e resoluto Uzun Haji – cujo túmulo permanece um local de maior peregrinação para muçulmanos chechenos – via pouca diferença entre os russos czaristas e os comunistas ateus. “Estou balançando a corda,” citado por seus inimigos, “para enforcar engenheiros, estudantes e em geral todos aqueles que escrevem da esquerda para a direita.”

Seu levante no Daguestão foi controlado em 1925, mas os soviéticos, chamando os sufis de “bandidos”, “criminosos” e “contra-revolucionários”, continuaram a aprisionar, executar e deportar os “dikhristas” praticamente até o início da Segunda Guerra Mundial. As irmandades suportaram a repressão como sempre o fizeram: os sheikhs desapareceram nas montanhas, os “murids” organizaram suas assembléias para “dikhr” em residências, e as ordens asseguraram seu segredo através do duplo elo de iniciação espiritual e lealdade de clãs.

Durante a Segunda Guerra Mundial, quando distúrbios ocorreram na Chechênia em 1940 e novamente em 1943, Stalin respondeu com uma surpreendente brutalidade que beirou o genocídio. Acusando-os de uma colaboração com a Alemanha nazista que permanece sem comprovação, em 1944 ele forçosamente relocou seis nacionalidades caucasianas inteiras, incluindo todas as populações chechenas e ingushes, para campos especiais na Ásia Central. Ao todo, mais de um milhão de muçulmanos do Cáucaso foram deportados, com tremendas perdas de vidas. De acordo com algumas estimativas, de um terço à metade da população chechena-ingushe somente – acima de 250.000 pessoas – desapareceram após a república ser liquidada em fevereiro de 1944.

Os chechenos e outros grupos passaram mais de uma década em campos de trabalho isolados no Cazaquistão. Entretanto, o deslocamento forçado fracassou em derrubar tanto as irmandades sufis quanto o espírito nacional checheno. Descrevendo a terrível “psicologia da submissão” que prevaleceu nos campos de relocação soviéticos, o autor russo Alexander Solzhenitsyn observou que apenas um povo se recusou a ser dobrado pelo sistema: “a nação como um todo – os chechenos.” E em pesquisas sociológicas posteriores, acadêmicos soviéticos eufemisticamente notaram que “condições especiais pós-guerra” tinham na verdade fortalecido as crenças religiosas dos povos caucasianos exilados.

Em 1957, quando os chechenos e outros grupos exilados caucasianos foram proclamados “reabilitados” e retornaram às suas repúblicas, descobriram que sua terra tinha sido “russificada”. Centenas de milhares de fazendeiros russos trazidos para trabalhar na terra durante suas ausências tinham se tornado residentes permanentes e agora compreendiam um quarto da população da região.

Os chechenos, ingushes e daguestanos também encontraram uma terra de onde o Islã havia sido varrido. As autoridades soviéticas experimentaram uma supressão quase total do Islã na região, fechando quase 800 mesquitas e 400 colégios religiosos. Os “mazars” foram demolidos, convertidos em museus do estado, ou se tornado inacessíveis. Apenas após mais de 30 anos, em 1978, as autoridades soviéticas no Cáucaso permitiram que menos de 40 mesquitas reabrissem e nelas empregaram menos de 300 “ulemas” registrados.

Estas medidas contra o Islã “institucional” tiveram pouco impacto sobre as irmandades sufis, que nunca dependeram das mesquitas ou “madrasas” (escolas religiosas) como seus centros. De fato, as ordens – particularmente os Naqshbandis – se destacam até o dia de hoje pela organização de suas próprias classes clandestinas de árabe e escolas para ensinar o Alcorão. E, ao longo dos anos 70, as ordens reconquistaram sua popularidade na Chechênia através de uma nova irmandade sufi chechena – uma ordem que se formou durante o exílio na Ásia Central.

A nova irmandade – chamada Vis Haji por causa de seu fundador, o sufi checheno Uways “Vis” Haji Zagiev – é uma derivação do ramo de Kunta Haji da ordem Cadirita. Identificada pela primeira vez nos campos em 1953, os Vis Haji combinam uma aderência escrupulosa ao Islã “conservador” com uma incessante retórica anti-russa e anti-soviética. Entretanto é permitido aos “murids” Vis Haji trabalhar nas indústrias do estado, mesmo aquelas envolvendo tabaco e álcool. Descritos por alguns observadores como “terrivelmente xenofóbicos”, a ordem explora tecnologia moderna para divulgar a mensagem espiritual de retidão e ativismo político. Relatórios soviéticos indicam que em algumas regiões os Vis Hajis aplicam secretamente suas próprias côrtes islâmicas e coletam ilegalmente vários impostos religiosos.

O “dikhr” dos Vis Haji, empregando violinos e algumas vezes tambores, também contribui para a popularidade da ordem. Atrativo até para não-membros, as performances de “dikhr” algumas vezes fornecem a base para assembléias públicas e apresentações durante feriados religiosos em muitas aldeias chechenas. Em outra prática única, a participação das mulheres é bem-vinda no “dikhr” Vis Haji, e existem relatos de mulheres sheikhs liderando seus próprios círculos de adeptas. Crucial na preservação da identidade muçulmana chechena durante o exílio, os Vis Hajis são reconhecidos hoje como a ordem mais ativa e inovadora no Cáucaso.

É improvável que Boris Yeltsin e a Federação Russa possam ter sucesso total na Chechênia onde gerações de governo repressivo, violento e até mesmo de genocídio abortivo falharam. É um erro situar o apoio do presidente Dzhokhar Dudayev contra os russos inteiramente com as irmandades sufis chechenas: sua agenda não é a delas, e sua fidelidade ao Islã é considerada política e superficial. Mas confrontadas com um exército russo invasor, as irmandades se uniram a ele. No início deste ano (1995) combatentes se retiraram para as montanhas e abandonaram Grozny, e o fim da guerra chechena se tornou tão indefinida quanto as próprias ordens sufis. Nesta incansável batalha de determinações entre Moscou e os muçulmanos  chechenos, Boris Yeltsin e a Federação Russa se apresentam como seus mais fracos oponentes.

Texto: "The Religious Roots of Conflict: Russia and Chechnya" de Daniel Damrel publicado originalmente no periódico "Religious Studies News", de Setembro de 1995. Daniel Damrel é membro do St. Cross College em Oxford e é Membro Associado da Faculdade no Departamento de Estudos Religiosos na Arizona State University. Este artigo foi retirado do site The Muslim Family Network.  Leia também o artigo "Kosovo: Onde Estavam os Muçulmanos?"  

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