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Medicina Árabe e o Ocidente
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Toledo durante muito tempo foi o centro
de referência para os astrônomos europeus. Córdoba entretanto,
simbolizou na Idade
Média, o esplendor da medicina árabe. Gerardo de Cremona, vindo a Toledo em meados do século XII
para procurar um texto de astronomia, o Almagesto
de Ptolomeu, dedicou a maior parte de suas traduções à medicina. Prova
do interesse que tinham por essa disciplina os sábios cristãos do
século XII, essa particularidade sugere também a existência de um terreno
favorável na cidade onde se exerceu a atividade do tradutor. Obras
escritas na Espanha muçulmana antes do século XII passaram para a posteridade
e exerceram influência duradoura. É
verdade que um certo empirismo parece ter prevalecido nos primeiros tempos da
conquista muçulmana. Se desde o
reinado do emir Abd ar-Rahman II (822-852), a aritmética, a astronomia e a
astrologia estiveram em evidência, a medicina se limitou por muito tempo a uma
prática cujos fundamentos científicos são pouco perceptíveis.
A medicina árabe da Espanha do século IX parece comparável
à que conheciam então os países cristãos da Europa;
exploram-se as mesmas fontes latinas: as Etimologias
de Isidoro de Sevilha, e, talvez, uma versão datando dos séculos V e VI
dos Aforismos de Hipócrates.
Ao mesmo tempo, no Oriente, Hunain ibn Ishaq, discípulo de outro
mestre famoso, Ibn Masawaih (o Mesué dos ocidentais de língua latina, a
partir do século XII), traduzia uma centena de tratados de Galeno, entregando
ao mundo árabe o saber daquele que foi, talvez, o maior teórico da
Antiguidade. A originalidade da medicina da
Espanha muçulmana, estava em atribuir grande importância à prática,
principalmente aos meios terapêuticos.
Apesar
de sua inclinação para a teoria, o próprio Averróes
definirá a medicina, no século XII, não como uma “ciência”,
mas como uma “arte”, indo contra o que os autores do Oriente árabe
tinham imposto. Essa tomada de posição dependia em parte da influência
de Aristóteles mas também se inscrevia na tradição da medicina
em al-Andalus. Diversos fatores são geralmente evocados pelos
historiadores para explicar essa tendência perceptível em outras ciências:
a adoção pelos soberanos Omíadas do direito malikita, que dava
pouco espaço para a especulação; um gosto particular pela natureza que
se manifesta desde o reinado de Abd ar-Rahman I pela criação de um
jardim botânico. A medicina de al-Andalus parece, efetivamente, ter-se
desenvolvido a partir da botânica. Em 948-949, uma comissão diplomática enviada pelo imperador Constantino Porfirogeneta trazia um manuscrito grego de Dioscurides para o califa Abd ar-Rahman III. Uma equipe, na qual estavam o médico judeu Hasday ibn Saprut e o monge bizantino Nicolau, começou a trabalhar para aperfeiçoar, com auxílio desse manuscrito, a antiga versão árabe vinda do Oriente, adaptando o vocabulário e tentando identificar as plantas. Esse empreendimento, que se estendeu por vários anos, deu certamente um impulso decisivo ao gosto que tinham os médicos de al-Andalus pela farmacopéia.
Mas o fim do século X em Córdoba é dominado pela personalidade
de Abul-Qasim Halaf ibn al-Abbas az-Zaharawi que os latinos conheceram mais
tarde pelo nome de Abulcasis ou Albucasis. Nascido na capital Mandinat az-Zahra,
esse médico morreu pouco depois de 1009, deixando uma enciclopédia cujos capítulos
sobre farmacopéia e, principalmente, cirurgia, manifestam uma competência prática
e uma aptidão a transmitir tanto conhecimentos livrescos quanto o savoir-faire.
A parte dedicada à cirurgia faz o renome de az-Zahrawi; ela abria um novo
caminho que o Ocidente não deixou de explorar, graças à representação
figurada de instrumentos, à importância dada à cauterização, à
descrição precisa do desenrolar das intervenções cirúrgicas.
Após a queda do califado em 1031, fez-se uma transferência de
saber para Toledo. Astrônomos, filósofos, médicos cordobeses
instalaram-se na cidade. Entre eles, o vizir Ibn Wafid al-Lahmi, que o cádi
Saíd nos apresenta em termos precisos e elogiosos: Ele
adquiriu um grande domínio da ciência dos medicamentos simples e um
conhecimento da matéria que ninguém possuía na sua época.
Compôs sobre esses medicamentos um livro sem igual, muito notável,
no qual condensou o conteúdo das obras de Dioscurides e de Galeno que
tratavam do mesmo assunto. Organizou segundo um plano excelente o seu trabalho,
que tem cerca de quinhentas páginas. Ele próprio me disse que,
durante vinte anos, até que esse escrito fosse levado ao ponto de perfeição
para o qual ele tendia e que ele desejava, reunira e ordenara os materiais desse
tratado, corrigira os nomes e as descrições dos remédios citados,
retificara os detalhes relativos às virtudes e ao grau de eficácia
desses medicamentos. Ibn Wafid, na medicina, tinha uma prática cheia de bom
senso e um método hábil, que consistiam nisto: não julgava
apropriado prescrever remédios enquanto o tratamento pelos alimentos ou algo
equivalente fosse possível. Se fosse necessário usar remédios, não
achava útil empregar medicamentos compostos, enquanto os simples
continuassem eficazes.
Originário de uma antiga e honrada
família de Córdoba, tornando-se vizir, Ibn Wafid constitui uma
prova evidente do crédito concedido à prática médica na Espanha muçulmana.
Compreendendo também um tratado de agronomia, sua obra se inscreve
perfeitamente na tradição de uma medicina que leva muito em conta os
conhecimentos de botânica.
O cádi Saíd nos
faz perceber uma outra vertente do meio erudito toledano, no qual a medicina
pertence mais ao campo da especulação e da erudição. Com efeito,
cita vários personagens versados ao mesmo tempo em astronomia, matemática
e medicina. Entre esses sábios, na maioria formados em Córdoba,
está Ibn al-Bagunis que, morto em 1056 aos setenta e cinco anos, começara
por aprender aritmética, geometria e lógica.
Ao contrário de Ibn Wafid, Ibn
al-Bagunis não praticava a medicina; segundo Saíd, parece que se
agruparam à sua volta e em torno do seu ensino jovens sábios que, também
formados em filosofia, se dedicavam à leitura dos tratados de Galeno. À
época da reconquista cristã, Toledo possuía não apenas práticos
experientes, mas também eruditos dedicados a reunir manuscritos de medicina e a
interpretá-los, integrando-os ao conjunto do saber intelectual.
Quando Gerardo de Cremona chega
a Toledo em meados do século XII, o Ocidente latino já dispõe de
várias obras de medicina árabes, graças às traduções
elaboradas em Monte Cassino no fim do século XI por Constantino, o Africano.
Nascido em Cartago, esse tradutor divulgou antes de tudo, os sábios que
atuaram na África do Norte, especialmente em Kairuan, no século X (Ishaq
ibn Imran, Ishaq al-Israili, Ibn al-Gazzar).
Também adaptara, em latim, as sínteses compostas no Oriente muçulmano
nos séculos IX e X por Hunain ibn Ishaq e al-Magusi, que transmitiam fielmente
o saber de Galeno tal como era ensinado em Alexandria antes da conquista
árabe. Vindo da Itália, onde essas primeiras traduções
começavam a ser difundidas, Gerardo de Cremona estava consciente das orientações
que elas tinham suscitado e das lacunas que deixaram. Suas preferências
refletem tanto o nível atingido pela medicina na Itália do século
XII quanto as possibilidades oferecidas pela cultura toledana cerca de setenta
anos depois da reconquista.
Gerardo de Cremona encontra em
Toledo as versões árabes de vários tratados de Galeno,
obras que os médicos cristãos estavam particularmente ávidos. Se
as traduções de Constantino, o Africano, garantiram a transmissão
dos princípios fundamentais do galenismo alexandrino, tinham no entanto
contribuído muito pouco para enriquecer o Ocidente latino em matéria de
obras autênticas. A demanda dessas obras é comprovada pelo fato de que,
paralelamente ao empreendimento de Gerardo de Cremona, Burgúndio de Pisa
procurava em Constantinopla manuscritos gregos de Galeno a fim de vertê-los
para o latim, com o provável estímulo dos mestres da Escola de
Salerno, então em seu apogeu. A lista que os colaboradores ou discípulos
de Gerardo de Cremona elaboraram depois de sua morte mostra oito obras autênticas
de Galeno; deve-se-lhes acrescentar o importante tratado Do
Método Terapêutico, que exerceu influência considerável sobre o
desenvolvimento do método da medicina ocidental.
No que se refere às obras
escritas originalmente em árabe, Gerardo de Cremona traduziu o que a
Espanha muçulmana produzira de mais original nos séculos X e XI: a Cirurgia, de az-Zahrawi, e o Tratado
das Medicinas Simples, de Ibn Wafid. Ao que parece, ele não teve notícia
do que se fazia, durante sua vida, na Andaluzia. Os manuais de prática
redigidos pelos Ibn Zuhr, médicos em Córdoba por várias gerações,
permaneceram desconhecidos para ele. Da mesma maneira, não conheceu a
reputação de Ibn Rusd (Averróis).
No campo da medicina não oriunda da Espanha, a comparação
com o quadro feito por Saíd um século antes é esclarecedora. Entre os
autores citados pelo cádi de Toledo, Gerardo de Cremona deixa de lado os
kairuaneses Ishaq ibn Imran e Ibn al-Gazzar, cujas obras principais já
tinham sido traduzidas por Constantino, o Africano; completa o trabalho deste
último sobre Ishaq al-Israili. Atribui especial importância ao médico
oriental dos séculos IX e X ar-Razi (Rhazès), que Saíd qualificava como
“o maior médico dos árabes” e que o Ocidente latino ainda não
conhecia; a enciclopédia dedicada ao soberano samânida Al-Mansur ibn Ishaq é
traduzida, assim como vários outros tratados.
A principal inovação
diz respeito ao Cânon de Avicena,
vasta suma da teoria e da prática, composta de cinco livros. O célebre médico
e filósofo, falecido em Hamadhan, em 1037, era desconhecido de Saíd
e de Constantino, o Africano. Ao mesmo tempo em que Gerardo de Cremona traduzia
o Cânon, Domingo Gonzálvez e
seu colaborador se dedicavam ao Tratado da
Alma. É difícil precisar em que momento a obra de Avicena
chegou a Toledo: deve-se ver uma iniciativa dos tradutores em sua introdução?
Ela chegou, efetivamente, com algum atraso à Espanha, onde não parece
ser utilizada, principalmente em filosofia, antes da elaboração das versões
latinas. Quanto ao Cânon, sabemos que
Abul-Ala’Zuhr, falecido em Córdoba, em1131, adquiriu um exemplar dele e
refutou em parte o que leu: talvez o aspecto sistemático e um tanto dogmático
dessa obra não se harmonizasse com a orientação prática da
medicina andaluza. Além da introdução
capital do Cânon de Avicena, a
atividade de Gerardo de Cremona atesta a chegada a Toledo do comentário
feito por Ali ibn Ridwan à Arte de
Galeno. A obra desse médico do Cairo, falecido no mesmo ano (1068) da redação
do Livro das Categorias das Nações, é a mais recente, vinda do
Oriente, que Gerardo de Cremona traduziu, no fim de sua vida.
Diferentes pela origem das
obras originais e pelos assuntos tratados, as traduções de Gerardo de
Cremona foram copiadas, conhecidas e utilizadas até o fim da Idade Média, e,
em sua maioria, impressas pelos editores do Renascimento. Entretanto, nem todas
tiveram o mesmo destino e a mesma influência. Enquanto o tratado de az-Zahrawi
deu um impulso decisivo à cirurgia ocidental, três obras ocuparam um lugar
central no ensino universitário da medicina: as enciclopédias que
formavam o Almansor de Rhazès e o Cânon
de Avicena ofereciam um saber organizado em todos os domínios (anatomia,
fisiologia, patologia, terapêutica); o comentário de Ibn Ridwan à Arte
de Galeno, que propunha interpretar as vias do conhecimento preconizadas pelo
mestre grego à luz dos modos aristotélicos da demonstração, alimenta
as discussões escolásticas sobre o método científico próprio
da medicina. O Cânon de Avicena se tornou, ao fim de uma lenta evolução que levou cerca de um século, a obra básica do ensino universitário medieval, e ainda era largamente usado no século XVI, apesar da ascensão do antiarabismo. Talvez desorientados pela originalidade do seu plano, os médicos só o assimilaram em seu conjunto na passagem do século XIII para o XIV. Até essa época, ele era mais usado para problemas específicos, por exemplo, sobre o papel da experiência na determinação da ação dos medicamentos. Ao mesmo tempo que tinha acesso a um número crescente de
obras de Galeno, traduzidas do grego e do árabe, o Ocidente latino
descobria - graças primeiramente a Miguel Scot e à sua atividade em Toledo,
depois a Guilherme de Moerbeke em 1260 - o conjunto dos tratados zoológicos
de Aristóteles, que abordava por várias vezes assuntos ligados à
medicina. O Cânon de Avicena oferecia
soluções a pontos de discordância entre esses dois mestres do
pensamento da Idade Média que foram Aristóteles e Galeno. Dava,
principalmente, um conselho geral: deve-se seguir o filósofo em matéria
de filosofia, o médico em matéria de medicina. A dupla qualidade de Avicena
(filósofo e médico) lhe conferia autoridade bastante para que seu
conselho fosse seguido pelos leitores ocidentais.
Introduzidas nas novas
universidades do século XIII, em um momento em que o mundo latino saía
definitivamente do seu torpor, as obras árabes traduzidas em Toledo
auxiliaram a formação de um pensamento médico ocidental. Elas foram
também responsáveis pela arabização do vocabulário
especializado. Enquanto o latim antigo não desenvolvera uma língua
técnica, o recurso a palavras de origem grega era praxe; Constantino, o
Africano, só introduzira um pequeno número de palavras árabes,
transliteradas de um alfabeto para outro. Gerardo de Cremona, ao contrário,
as multiplicou, às vezes ignorando um equivalente latino, geralmente por
preocupação com a precisão e a fidelidade em relação ao
original. Essas palavras de origem árabe, deformadas ao longo das
transcrições, coexistiram com os helenismos antigos e novos,
multiplicando os sinônimos e causando grande confusão, principalmente no
campo da anatomia e da farmacopéia. A “barbarização” do vocabulário
foi uma das razões que os humanistas do Renascimento alegaram para
menosprezar seus predecessores medievais. Na ausência de instrumentos linguísticos suficientemente especializados, os tradutores tiveram que inovar; no fim da Idade Média, o vocabulário médico manifestava suas diferentes escolhas. Nos últimos anos do século XIII, o italiano Simão de Gênova, médico e capelão do papa, tentou organizar esse vocabulário, redigindo uma espécie de dicionário, registrando as palavras sob a forma que elas apresentavam nas traduções, dando seus diferentes sinônimos e explicando seu sentido com a ajuda de citações. Muito utilizados, os Sinônimos de Simão de Gênova tiveram, entretanto, um impacto limitado, pois se referiam essencialmente à farmacopéia. Essa confusão do vocabulário era o preço da introdução de um saber vindo do exterior, num mundo em que os conhecimentos científicos tinham atingido seu nível mais baixo. Preocupados em transmitir o máximo de informações, os tradutores não se preocuparam com a pureza da língua latina. Elaborado por Maria C. Moreira, webmistress do Islamic Chat. Fonte: Texto "A Medicina Árabe e o Ocidente" de Danielle Jacquart no livro "Toledo - Séculos XII - XIII - Muçulmanos, Cristãos e Judeus: O Saber e a Tolerância" - Ed. Zahar - Rio de Janeiro. Visite também o artigo "A Idade Dourada da Civilização Islâmica".
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