Terror e Preconceito - O Que Incomoda na Revista Veja

 




"O que incomoda o terror". Este foi o título da Carta ao Leitor da última edição de Veja (1.178, com data de 19/09/01), que foi quase integralmente dedicada aos atentados da semana passada nos Estados Unidos. Raras vezes o brasileiro teve a chance de ver uma publicação se desnudar e revelar a sua visão de mundo como neste editorial.

Eis a síntese do pensamento da direção de Veja:

"O verdadeiro alvo visado pelos terroristas que atacaram Nova York e Washington na semana passada não foram as torres gêmeas do sul de Manhattan nem o edifício do Pentágono. O atentado foi cometido contra um sistema social e econômico que, mesmo longe da perfeição, é o mais justo e livre que a humanidade conseguiu fazer funcionar ininterruptamente até hoje. (...) Foi uma agressão perpetrada contra os mais caros e mais frágeis valores ocidentais: a democracia e a economia de mercado. (...) [O que os radicais não toleram] é a existência de uma sociedade em que os justos podem viver sem ser incomodados e os pobres têm possibilidades reais de atingir a prosperidade com o fruto de seu trabalho."

Tudo bem que o semanário da Editora Abril tenha como um de seus mais caros valores a economia de mercado. Nada contra. Também não há nenhum problema no fato de a revista acreditar na "justiça" e na ampla mobilidade social do capitalismo. É o direito dos acionistas da empresa que edita Veja. A família Civita, proprietária da Abril, acredita nesses valores há muito tempo e tem o direito de compartilhar com os seus leitores as suas graves preocupações com a ameaça que paira sobre os EUA e "todo o mundo ocidental".

Nada disto, portanto, incomoda. O que incomoda na Veja é a editorialização das reportagens que apresenta aos seus leitores. Não basta o editorial. É preciso convencer o público de que Veja tem razão. Sempre.

Senão vejamos, ao analisar trechos da principal reportagem da edição desta semana, intitulada "A descoberta da vulnerabilidade":

 

O fim do relativismo cultural e a sede de vingança

"O relativismo cultural, teoria formulada na década de 30 pelo antropólogo americano Melville Jean Herskovitz, preconiza que nenhuma cultura é superior a outra. Que cada uma deve ser entendida dentro de seu próprio contexto (...). É dessa perspectiva que alguns estudiosos acham possível justificar, por exemplo, a prática de muçulmanos africanos de extirpar o clitóris das adolescentes. Do relativismo cultural nasceria na década de 80 o discurso politicamente correto, que aboliu do vocabulário palavras e expressões que soam pejorativas a minorias étnicas, homossexuais e portadores de deficiência física. Com os atentados, o relativismo sofreu um abalo: por alguns dias, pelo menos, o mundo voltou a ser dividido entre países civilizados e nações bárbaras. E, contra os bárbaros, políticos e analistas pediram ‘vingança’".

Os dois trechos em vermelho são exemplos evidentes da editorialização do texto de Veja. Marotamente, a revista usa um exemplo forte e totalmente deslocado de seu contexto (a extirpação do clitóris) para causar no leitor a sensação de que o "relativismo cultural" é um conceito equivocado. Em seguida, "prova" que o mundo agora está novamente dividido entre civilização e barbárie, sem se esquecer de deixar claro que apóia a revanche.

 

Bombardeios dos EUA no Sudão tiveram "pouco efeito"

 

"Depois de atentados contra a embaixada americana no Quênia e na Tanzânia, em 1998, aviões e navios americanos bombardearam campos de treinamento de Bin Laden e uma fábrica de medicamentos no Sudão, que se acreditava estar produzindo e armazenando armas químicas para terroristas - mas tais ações tiveram pouco efeito" (grifo meu).

Neste ponto, Veja tropeça feio. O bombardeio norte-americano no Sudão, realizado durante a administração Clinton, teria matado pelo menos 2.500 pessoas. Segundo o lingüista norte-americano Noam Chomsky, este número pode ser maior, pois os EUA vetaram as investigações sobre o bombardeio.

 

Veja quer sangue

"Diante do horror da destruição em Nova York, é improvável que o governo ou a opinião pública fiquem satisfeitos com uma simples retaliação aqui ou ali. (...) Só se pode imaginar como será travada a guerra da superpotência contra terroristas que se escondem nos grotões do Terceiro Mundo. Com o fim das ideologias e depois dos atentados, o planeta está agora obcecado pela segurança. (...) Pode-se até dizer que a partir de agora os americanos devem mostrar-se mais compreensivos diante da brutal reação israelense ao terrorismo islâmico" (grifos meus; os demais, também).

O texto aqui é auto-explicativo. A revista quer revanche, seja dos EUA, seja de Israel. Os "grotões do Terceiro Mundo" – quem mandou ser grotão? – que se virem. Com culpa no cartório ou não, vai sofrer a conseqüência da ousadia contra o império. Sobre este trecho, cabe ressaltar apenas que é recorrente em Veja a tentativa de vender aos leitores idéia do "fim das ideologias", de um mundo onde o capitalismo impera sem adversários. Poder-se-ia dizer que se trata de uma tentativa de difundir a vulgarização do "fim da História", de Francis Fukuyama. Uma tentativa sobretudo tosca.

 

O mundo islâmico, para Veja

"O ataque da semana passada tem a assinatura de um tipo particularmente terrível de terrorismo, cuja motivação é o fanatismo muçulmano.(...) Como se pode lidar com terroristas cujo objetivo é retornar ao século VIII? Eles não fazem exigências, não pedem dinheiro para libertar reféns. Só querem ver sangue. (...) O que os fundamentalistas não suportam em Israel não é a opressão de uma população sob ocupação, mas o fato de o Estado judeu ser a presença ocidental mais perto de suas mesquitas. Se destruíssem Israel, o que viria depois? Os terríveis atentados nos Estados Unidos dão idéia do que são capazes (...) A globalização incomoda a turma do turbante pela modernidade que traz no bojo. O fundamentalismo islâmico é, em boa medida, a manifestação de uma elite que exerce sobre seus povos uma tirania milenar, baseada na religião e nos costumes imutáveis. (...) O universo dos fundamentalistas é aquele em que se queimam livros, se proíbem filmes e música. As mulheres são cobertas de véus e devem submissão ao poder masculino".

Para a revista Veja, o fanatismo muçulmano gera um terrorismo "particularmente terrível". Não fica claro, mas a impressão que se tem é a de que outros fanatismos – religiosos ou não – são menos terríveis do que o muçulmano. Pelo menos os demais não querem "voltar ao século VIII". Na verdade, a compreensão de Veja sobre o mundo islâmico é demasiadamente estreita. Queimar livros, proibir filmes e músicas, submeter as mulheres ao poder masculino e o povo ao poder da elite não são de maneira alguma exclusividades do mundo islâmico.

Por mais que se possa discordar dos valores e do modo de vida da "turma do turbante", como quer Veja, a verdade é que o preconceito em nada ajuda, só atrapalha. Dizer que a modernização oriunda da globalização é o que incomoda o mundo islâmico é um reducionismo e, sobretudo, uma demonstração de preconceito.

Ao fim e ao cabo, a reportagem de Veja mostra que o que incomoda os acionistas da revista é a possibilidade de que a tal "globalização modernizadora" – ou, falando português claro, todo um sistema político-econômico que sustenta a riqueza de uma minoria na miséria de uma maioria – comece a ser seriamente questionada a partir dos atentados da semana passada. Melhor mesmo arrumar uns fanáticos, de preferência árabes, para expiar toda culpa.

 

Texto de Luiz Antonio Magalhães veiculado no site do Observatório da Imprensa, que permite a utilização de seu material, e pode ser visitado no endereço http://www.observatoriodaimprensa.com.br 

Leia também as cartas de protesto enviadas por muçulmanos à revista Veja

 

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