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Entender o Fenômeno Talebã: uma Tarefa Crucial para o Movimento Islâmico
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As
notícias do Afeganistão na mídia internacional revolvem em torno das
proibições estabelecidas e na imposição forçada do uso de barba e
da ‘burqa’ (o traje das mulheres afegãs). Parece que o vocabulário
do Talebã médio encolheu para duas palavras: haram (proibido) e fardh
(obrigatório). Relatos de restrições draconianas sobre as mulheres
tomam o lugar central, por causa do fascínio ocidental com o que se
encontra por trás do véu. Se diz que os homens responsáveis em reforçar
a decência pública batem
nas mulheres que mostram seus rostos ou tornozelos na rua. Não é
permitido à maioria das mulheres trabalhar. São proibidas de ser
atendidas por médicos, embora existam poucas médicas disponíveis. A
maioria das escolas para meninas foram fechadas, e a única educação
disponível é a instrução religiosa para as meninas que não alcançaram
a puberdade. O
que podemos fazer de tudo isto? Alguns muçulmanos concordam com estas
políticas e suportam publicamente o Talebã. Outros discordam
violentamente, advogam raspar a barba a fim de demonstrar seu desacordo,
e estão dispostos a aparecer na televisão ao lado de grupos de
direitos humanos seculares e feministas,
de modo a denunciar estas políticas. Mas a maioria dos muçulmanos mantêm
um silêncio embaraçante, se refugiando atrás da desculpa de que
"nós não sabemos realmente o que está acontecendo lá." Seria mais honesto dizer que nós não queremos saber o que
está acontecendo, e menos ainda lidar com o que está se passando. Para
a maioria dos muçulmanos,
os afegãos são um povo heróico que derrotou a União Soviética
apesar das esmagadoras possibilidades.
A guerra civil subseqüente no Afeganistão decepcionou
profundamente a maioria das pessoas e levou-as a ignorar ao máximo o conflito em andamento, tanto quanto possível. A maioria dos muçulmanos
em todo mundo acalenta a esperança de um estado islâmico justo
surgindo em algum lugar, se não em seu próprio país. Esta esperança
sustenta muitos povos em face do que parecem ser situações sem esperança.
Ver este sonho se tornar um pesadelo, e a frase ‘justiça islâmica’
usada como sinônimo de tirania, é doloroso. Finalmente,
a crítica ao Talebã, independente se vem de não-muçulmanos ou de muçulmanos,
é frequentemente carregada de preconceitos
ou interesses políticos. Os muçulmanos demonstram com freqüência seus
interesses partidários, de classe, étnicos e de madhhabi em suas críticas,
chamando os Talebãs de "camponeses ", "Pashtun
ignorantes ", ou "Wahabis". As críticas aos muçulmanos
contam uma estória parcial: a quem a proibição do uso de papel higiênico
afeta primeiramente? Pobres dos correspondentes estrangeiros que são
forçados a usar uma lota (jarro de água)! Se qualquer país não-muçulmano
proibisse o uso de papel higiênico, os grupos ambientais o estariam
aplaudindo por sua decisão ecologicamente progressista. A cumplicidade ocidental e sua responsabilidade pelos excessos do Talebã são usualmente ignorados; se a economia é baseada no ópio, o que se pode esperar após 22 anos de guerra e convulsão social, isto sem falar da imposição recente de sanções econômicas? Estas críticas ao Talebã são claramente uma maneira de atacar os movimentos islâmicos em geral e de provar que qualquer tentativa para atualizar as dimensões sócio-políticas do Islã nesta era está fadada ao fracasso e que nada poderia ser pior do que uma sociedade baseada no Islã. Outras facções afegãs têm feito uma milhagem política através de
tais ataques da mídia ocidental, mas a longo prazo todos os muçulmanos,
dentro e fora do Afeganistão, pagarão um alto preço por tal cobertura
nos anos que estão por vir. Ela está sendo usada como uma arma contra
toda auto-assertiva do muçulmano em qualquer lugar, mesmo o do tipo
mais pacífico e inócuo. Enquanto a mídia classifica o Talebã como medieval, de fato tais grupos são completamente modernos e emergiram em conseqüência das condições instáveis do mundo moderno. Movimentos similares podem ser encontrados em outros países e entre muitas das religiões mundiais. Os cristãos americanos que bombardeiam clínicas de aborto, hindus que demoliram a mesquita Babri Masjid e estão com seus olhos voltados para um número de outras mesquitas em toda a Índia, os judeus ultra-ortodoxos que jogam pedras nas mulheres que andam em suas vizinhanças usando calças compridas e blusas de mangas curtas, todos têm mais em comum com o Talebã do que eles (ou o Talebã) percebem. Todos estes movimentos, apesar de suas diferenças externas, são uma reação às dramáticas mudanças sociais, políticas e econômicas que ocorreram nos últimos cento e cinqüenta anos. O mundo está sendo inundado pela lei (tentativas vãs), e muito disto está além do controle de pessoas comuns. Muitos muçulmanos percebem que suas culturas estão em atraso em relação ao avanço da tecnologicamente avançada e agressiva civilização secular global. O
mundo moderno se concentra primeiramente em coisas materiais. O
desenvolvimento é medido por indicadores materiais, não por coisas
intangíveis como a consciência de Deus, o sentimento de fraternidade,
ou de boa vizinhança. Os movimentos ao estilo do
Talebã também se concentram no material, nos aspectos tangíveis
das normas da fé e no comportamento externo. Ao contrário de crenças,
intenções e sentimentos, estes podem ser controlados e impostos às
pessoas. A violência do Talebã contra aqueles que quebram as regras é
uma aplicação da visão moderna de que a interferência do estado nas
vidas dos indivíduos é a resposta à maioria dos problemas sociais. Um
foco excessivamente literal em versículos corânicos e ‘hadiths’
isolados obscurecem uma visão maior da situação, e faz das leis o
centro da atenção enquanto a conduta ética permanece quando muito
opcional. Este
foco em regras ignora também os pré-requisitos para o estabelecimento
de um sistema islâmico no mundo moderno. Desde 1975 esboçando o CEDAW
(Convenção para a Eliminação da Discriminação Contra às Mulheres),
as Nações Unidas e vários ONGs têm tentado desestimular a educação
e assistência médica separadas para cada sexo. Os muçulmanos na
maioria a tem ignorado, com algumas comunidades debatendo se e até que
ponto as mulheres devem ser educadas. Em conseqüência, ainda existe
uma falta marcante de mulheres atuando como
médicas, enfermeiras, na área médica em geral, e como
educadoras na maioria das comunidades muçulmanas, incluindo o Afeganistão. Algumas
mulheres se graduam em medicina ou em áreas de educação mais com a
intenção de melhorar suas chances de casamento do que de praticar sua
profissão após a graduação. Outras preferem (ou são compelidas por
circunstâncias) trabalhar no Ocidente. As idéias distorcidas de que
uma mulher casada não tem nenhuma responsabilidade na ummah (comunidade
muçulmana), e de que é vergonhoso se ela tiver interesses além de seu
círculo imediato na família, também estão vivas e bem. Além disso,
algumas mulheres muçulmanas, mesmo aquelas que observam o ‘purdah’,
preferem ser atendidas por médicos homens porque não têm confiança
na competência das mulheres. Isto é baseado em parte na opinião
cultural da inferioridade feminina, mas também no triste fato de que as
médicas tem frequentemente acesso restrito a treinamento se comparadas
com os homens, e dificilmente podem obter especializações fora dos
ramos de obstetrícia e ginecologia.
Nestas
circunstâncias, a separação de facilidades médicas e educacionais
para mulheres e homens torna-se claramente injusta. Prejudica as
mulheres como indivíduos, bebês e crianças, homens, a família e a
ummah como um todo. Também é profundamente desestabilizante: as
pessoas que têm os meios para deixar tal sociedade o farão em busca de
tratamento médico, instrução e oportunidade. Aqueles que ficarem
tenderão a ser sufocados, e suas habilidades de lidar com os desafios
apresentados pelo mundo moderno serão diminuídas. O
Talebã está tendo que lidar com a
condenação internacional e uma queda-de-braço financeira pelos países
doadores. Em conseqüência, têm que apresentar sinais de melhora em
sua posição em relação às mulheres. No dia 8 de Março, eles
prepararam uma celebração do Dia Internacional da Mulher em Kabul para
700 mulheres escolhidas a dedo, anteriormente empregadas na área médica. O Talebã proibiu a celebração do Nawruz (o ano novo
persa da época pré-islâmica) como uma bidah (inovação), mas
aparentemente o Dia Internacional da Mulher, que comemora uma greve de
trabalhadoras da área têxtil americana, é aceitável. Esta
é uma indicação de seu desamparo em face da condenação ocidental,
porque o problema das mulheres não terminará jogando-se um véu sobre
ele, e soluções ocidentais estão sendo usadas como um disfarce.
Aqueles afegãos que poderiam ter proposto soluções islâmicas
construtivas e criativas foram mortos ou exilados. A
situação no Afeganistão não pode continuar como está, e quando as
coisas se estilhaçam se questiona sobre quem irá recolher os pedaços.
Organizações cristãs e seculares de apoio estão ansiosas para se
estabelecer a partir da desilusão dos
afegãos com o Islã, e os missionários estão convertendo
ativamente refugiados afegãos ao Cristianismo. Vinte anos de agora,
qual será o resultado da experiência Talebã? Uma geração de
intelectuais, autores e artistas rancorosamente, violentamente anti-islâmicos?
Irá alguém ousar andar nas ruas de Kabul usando barba ou burqa? O movimento islâmico precisa olhar honestamente a situação no Afeganistão (e em lugares tais como o Iraque e o norte do Paquistão, onde ideias ao estilo do Talebã têm seguidores), considerar as origens e as consequências de tais grupos, e desenvolver as respostas que resolverão os problemas que eles criam a partir de uma estrutura islâmica. Voltar nossos rostos às realidades dolorosas é uma opção que não podemos nos permitir, tanto porque trai o sofrimento de muitos homens e mulheres do Afeganistão, quanto pelas conseqüências a longo prazo para a Ummah como um todo. Texto de Aisha Geissinger apresentado no site Muslimedia e traduzido com permissão de seus editores. Visite também neste site o artigo 'O Problema Número 1 do Afeganistão?'
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