Purificação do Coração no Islã
O Coração da Purificação
O Imam Mawlud começa com um jogo de palavras que se perde na tradução. A palavra para começo em árabe é bad'u, e a palavra para coração (qalb) também significa reverter algo. Se alguém literalmente inverter a palavra bad'u em árabe, resultaria na palavra adab, que é o termo para cortesia - onde este tratado começa, já que a cortesia é o portal para a purificação do coração.
Adab em árabe significa uma combinação de coisas, além de cortesia. Adib (um derivativo de adab), por exemplo, passou a significar uma pessoa erudita, alguém que é instruído, porque boas maneiras e cortesia estão associadas ao aprendizado e à erudição. Mas na raiz da palavra adab, a ideia de cortesia está firmemente estabelecida. O Imam Mawlud inicia seu tratado com cortesia, uma vez que conduta e comportamento excelentes são as portas de entrada da ciência da purificação espiritual. É preciso ter cortesia em relação a Deus - comportar-se adequadamente com respeito à Sua presença - se desejar purificar o coração. Mas como se consegue essa cortesia? O Imam Mawlud menciona duas qualidades necessárias associadas à cortesia: modéstia (ḥayā') e humildade (dhul).
Hayā', em árabe, transmite o significado de vergonha, embora a palavra raiz de ḥayā esteja intimamente associada à vida e viver. O Profeta declarou: “Toda religião tem uma característica que é característica dessa religião. E a característica da minha religião é ḥayā’”, um senso interno de vergonha, que inclui a timidez e a modéstia.
Alguns antropólogos dividem culturas em culturas de vergonha e culpa. Dizem que a culpa é um mecanismo interno e vergonha um mecanismo exterior. Com relação a essa discussão, a culpa alude a um mecanismo humano que produz fortes sentimentos de remorso quando alguém fez algo errado, a ponto de precisar corrigir o problema.
A maioria das culturas primitivas não é baseada na culpa, mas em vergonha, que está enraizada no medo de causar vergonha a si mesmo e à família. O que o Islã faz é honrar o conceito de vergonha e levá-lo a outro nível - a um nível em que se tem um sentimento de vergonha diante de Deus. Quando uma pessoa reconhece e percebe que Deus está plenamente consciente de tudo que se faz, diz ou pensa, a vergonha é elevada a um plano mais elevado, ao mundo invisível do qual não há cobertura. De fato, sente-se vergonha até diante dos anjos. Assim, enquanto os muçulmanos consistem em uma cultura baseada na vergonha, essa noção transcende a vergonha diante da família - sejam os mais velhos ou os pais - e admite um mecanismo que não está sujeito às normas mutáveis das culturas humanas. Está associado ao conhecimento e à consciência ativa de que Deus vê tudo o que se faz - uma realidade que é permanente. O cultivo dessa percepção impede que se envolva em atos que são desagradáveis e vulgares. Essa é a essência dos nobres ensinamentos proféticos.
O Imam Mawlud menciona que também se deve ter dhul, que literalmente se refere a ser humilde, abjeto ou humilhado. O Alcorão menciona que as pessoas que incorrem na ira de Deus têm esse estado de humilhação imposto a elas. Mas o que se entende aqui é algo diferente; é humildade voluntariamente assumida diante de Deus, o que é exigido por cortesia.
Curiosamente, a palavra munkasiran é traduzida como desalentado, embora literalmente signifique quebrado. Transmite uma sensação de ser humilhado na presença majestosa de Deus. Refere-se à incrível percepção de que cada um de nós, a todo o momento, vive e age diante da presença augusta do Criador dos céus e da terra, o único Deus além de Quem não há poder ou força em todo o universo. Quando alguém reflete seriamente sobre a perfeita vigilância de Deus sobre Sua criação, as incontáveis bênçãos que Ele envia, e então considera os tipos de atos que apresenta diante Dele - que sentimentos possíveis podem gerar, exceto humildade e graus de vergonha? Com esses sentimentos fortes, implora-se a Deus pela mudança da própria condição, que faça os seus desejos consoantes com o Seu prazer - desistindo dos próprios planos em favor dos desígnios de Deus. Isto é pura cortesia com respeito a Deus, um requisito para a purificação espiritual.
O Profeta disse: "Nenhum de vocês [plenamente] acredita até que seus desejos estejam de acordo com o que eu trouxe", alinhados e em paz com os ensinamentos do Profeta, que incorporam o legado dos ensinamentos proféticos de Noé, Abraão, Moisés e Jesus. Isso implica em se libertar da ganância e recusar a ética de fazer algo por um motivo ulterior que é essencialmente egoísta e dissonante com os ensinamentos dos profetas de Deus. Ninguém pede nada aos servos de Deus, isto é, seres humanos. Se alguém pede algo, deve pedir a Deus, o Soberano dos céus e da terra. A regra básica é: peça a Deus e depois trabalhe, isto é, pegue os meios (asbab) que se deve usar para alcançar algo neste mundo.
O Imam Mawlud diz que se deve apressar-se “para cumprir o mandamento [de Deus]” e ser “cauteloso com a sutil invasão das más maneiras”, isto é, falhas das quais não se tem conhecimento. Um hadith declara: "Um dentre vós dirá uma palavra e não a considerará, embora ela arraste a pessoa [que a pronunciou] através do Inferno durante 70 anos". Uma pessoa pode estar tão desconectada dos ensinamentos proféticos que pode facilmente ser descuidada com algo que, na realidade, convida a um grande dano.
Liberdade e Purificação
O imam Mawlud fala a seguir sobre a liberdade, que é alcançada quando se percebe as qualidades da vergonha e da humildade e se esvazia de seus opostos (falta de vergonha e arrogância). Com essas qualidades vem a verdadeira liberdade, riqueza e dignidade, que exigem a libertação dos laços dos próprios caprichos. As pessoas podem alegar serem “livres”, mas não conseguem se controlar da glutonaria na presença de comida ou de relações sexuais ilícitas quando a oportunidade se apresenta. Tal noção de liberdade é desprovida de conteúdo. A liberdade tem um significado real, por exemplo, quando uma situação de tentação surge e a pessoa permanece temente a Deus, firme e no controle de suas ações. Imam al-Ghazali fala longamente sobre o estômago e os genitais como os dois “dominantes”; se estão sob controle, todos os outros aspectos do desejo são mantidos sob controle. Pode-se incluir também a língua, que pode ser um obstáculo formidável. Há pessoas, por exemplo, que parecem incapazes de evitar falar mal dos outros, e muitas vezes o fazem sem perceber.
É comum as pessoas não gostarem de empobrecimento ou humildade porque percebem nessas qualidades a abjeção. No entanto, o Profeta escolheu a pobreza em detrimento da riqueza: não tinha dinheiro em casa e dormia no chão sobre uma cama feita de couro recheado com fibras de palmeira; não tinha jóias e tinha dois travesseiros em seu quarto para convidados. Em grande parte da cultura atual, viver dessa maneira seria considerado extrema pobreza. O que o Imam Mawlud enfatiza é o seguinte: a dignidade com Deus vem para aqueles que são humildes diante Dele; que valorizam primorosamente a forma como são recebidos pelo seu Criador e não pela maneira como serão julgados pelas normas efêmeras das pessoas. Há muitos relatos, por exemplo, de pessoas que já estiveram em posições de autoridade e riqueza, que então se viram indigentes e completamente despojadas de sua antiga glória, reduzida, em muitos casos, à custódia do estado. Deus é poderoso sobre todas as coisas, e todo bem, autoridade e provisão estão em Suas mãos, não nas nossas.
A partir disso, derivamos um importante princípio: se alguém persegue um atributo, será adornado por seu oposto. Se alguém é humilde perante Deus, Ele o tornará honrado. Por outro lado, Deus humilha os soberbos, aqueles que arrogantemente procuram posição e glória diante dos olhos das pessoas.
O imam Mawlud diz em seguida que não há salvação “como a salvação do coração, dado que todos os membros respondem aos seus desejos”. Se o coração de uma pessoa está seguro, os membros também estão, pois realizam as ações inspiradas pelo coração. Os membros dos corruptos tornam-se instrumentos através dos quais a corrupção se espalha.
Um hadith implica que a língua é o “intérprete do coração”. A hipocrisia é deplorável porque o hipócrita diz com sua língua o que não está em seu coração. Maltrata a sua língua e oprime seu coração. Mas se o coração está sadio, a condição da língua o segue. Somos ordenados a sermos retos em nosso discurso, que é um indicador do coração. Segundo uma tradição profética, toda manhã, quando os membros despertam no mundo espiritual, estremecem e dizem à língua: “Teme a Deus por nós! Pois se for reto, então somos retos; e se se desviar, também nos desviaremos ”. Envolver-se na lembrança regular de Deus (dhikr) protege a língua e substitui a conversa inútil por palavras e frases que elevam em honra. A língua é essencial para desenvolver a cortesia com Deus, que é o ponto principal da existência.
O processo de purificação
Purificar o coração é um processo. Primeiro, deve-se entender a necessidade de ter cortesia com Deus e a importância de cumprir suas exigências, como acabam de ser declaradas. Segundo, deve-se estar atento às doenças do coração - conscientes de sua existência, de seus males e das complicações e problemas deletérios que delas decorrem, e reconhecer que essas doenças impedem que se obtenha essa cortesia. O conhecimento das doenças do coração, suas causas e como removê-las é uma obrigação de todo ser humano adulto sadio.
O imam Mawlud cita o Imam al-Ghazali (um mestre do século XI da ciência da purificação), sustentando a posição de que é de fato uma obrigação para todos aprenderem sobre as doenças do coração e suas curas. O Imam Mawlud então afirma que alguns estudiosos sustentam que isso não é uma obrigação em si para todos, particularmente para uma pessoa que já foi abençoada com um coração saudável e foi poupada dessas doenças.
Em suma, embora estudiosos muçulmanos do calibre do Imam al-Ghazali digam que as doenças do coração estão relacionadas à natureza humana, eles também diriam que isso se manifesta como inclinação humana. Além disso, os muçulmanos não acreditam que essa inclinação seja resultado do erro de Adão ou que Adão tenha trazido sobre si mesmo (e seus filhos) um estado permanente de pecado que só pode ser suspenso pelo sangue sacrificial. Adão e Eva erraram, mas também se voltaram em penitência a Deus, e Deus aceitou seu arrependimento e perdoou a ambos. Essa é a natureza do perdão de Deus. Não houve mácula transmitida à sua progênie. O Alcorão declara que nenhuma alma suporta o fardo do pecado de outra alma (6: 564). Mas este fato não nega a existência de instintos básicos entre os seres humanos.
Toda esta questão aponta para o coração como um órgão espiritual. O aspecto invisível do coração contém uma semente que tem o potencial de se tornar um câncer que pode criar metástases e atingir o coração. A bactéria responsável pela tuberculose, por exemplo, vive latente nos pulmões de milhões de pessoas. Quando seus portadores envelhecem ou sucumbem a outra doença que enfraquece seu sistema imunológico, a tuberculose pode começar a surgir. A analogia é que há um elemento dormente no coração humano que, se nutrido e permitido crescer, pode danificar a alma e eventualmente destruí-la. O Profeta declarou: “Se o filho de Adão pecar, uma mancha negra aparece no coração. E se a pessoa se arrepende, é apagada. Mas se não o fizer, continuará a crescer até que todo o coração se torne negro.” (Incidentalmente, essa noção de associar a cor preta ao pecado não é racista em suas origens. A atribuição tem sido usada há muito tempo entre os negros africanos que se referem a uma pessoa que é deplorável como "de coração negro". O Alcorão diz sobre pessoas bem-sucedidas no Dia do Julgamento que seus rostos se tornam brancos (Alcorão, 3: 506). Isso não significa branco como matiz de pele; refere-se à luz e ao brilho, que são descrições espirituais não associadas à cor real. Uma pessoa negra pode ter uma luz espiritual em seu rosto e uma pessoa branca pode ter trevas e vice-versa, dependendo da condição espiritual e moral de cada um.)
O Imam al-Ghazali considera que as doenças do coração fazem parte do potencial Adâmico. Ele acredita que se é obrigado a saber isso sobre a natureza humana, para estar protegido. É interessante que o imam Mawlud diz que é impossível livrar-se completamente dessas doenças. Isso implica que a purificação é um processo que dura a vida toda, e não algo que é aplicado uma vez e depois esquecido. A pureza do coração nunca sobrevive a um relacionamento passivo. É preciso proteger sempre o coração.
Há um hadith conhecido que afirma que toda criança nasce no estado de fitra. Por alguma razão, os muçulmanos muitas vezes traduzem como: “Toda criança nasce muçulmana”, mas o hadith diz fitra, o que significa que as pessoas nascem inclinadas à fé - nascidas com uma percepção intuitiva do propósito divino e uma natureza construída para receber a mensagem profética. O que resta, então, é nutrir a fitra e cultivar essa inclinação à fé e pureza de coração.
Do livro “Purificação do Coração – Sinais, sintomas e curas das doenças espirituais do coração”, do Imam Mawlud. Parte dos comentários introdutórios do tradutor, sheikh Hamza Yusuf. Tradução para o português e edição por Maria Christina Moreira.
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