O
Estado de Ihram - Por um Observador Cético
O Hajj, a peregrinação que todo muçulmano deve fazer à Meca pelo menos uma
vez na vida, é um dos pilares do Islã.
Para um observador cético ocidental, é fácil confundir o Hajj com os rituais
de sacrifício cristãos, cujos objetivos são mortificar a carne, enaltecer o
espírito e penitenciar os pecados.
O Hajj de fato é um sacrifício, uma exaustiva seqüência de compromissos
ritualísticos meticulosamente definidos pelas rígidas e complexas leis islâmicas,
os quais o peregrino terá que cumprir enfrentando a inclemência do clima, as
multidões que dividem espaços de trânsito exíguos, a abdicação a confortos
básicos, como se lavar com sabonete perfumado, proibido no período.
Aliás quem diz que entende de Islã deveria citar de memória o que é proibido
(ilícito), obrigatório, recomendável e desaconsalhável durante o Hajj. Eu não
conseguiria fazer nem a primeira etapa, o Tawaf, as voltas em torno da Caaba,
sem um personal-Hajj-training me dizendo o que e como eu teria de proceder. Existem
regras, aos montes, para tudo e as regras têm sub-regras e exceções.
Mas como eu estava dizendo, o Hajj não pode ser confundido com o sacrifício
cristão por mais que as condições mortifiquem o peregrino (houve casos de
mortes de pessoas, espremidas pela multidão que tentava se aproximar da Caaba).
Uma das particularidades do Hajj que talvez torne a peregrinação e seus
rituais inalcançáveis para o observador não muçulmano é o chamado estado de
Ihram, uma combinação de disposições mentais, comportamentais e físicas às
quais o peregrino deve se submeter durante o cumprimento das etapas do Hajj.
Estudiosos não muçulmanos por vezes definem o Ihram apenas como um estado de
extrema paciência, no qual o peregrino se dispõem a aceitar todas as tribulações
da peregrinação, mantendo-se sereno e gentil com os demais peregrinos.
Acho tais explicações simplistas, não que eu tenha uma melhor, também não
entendi muito bem a coisa toda e as fontes muçulmanas sobre o assunto são
dirigidas a muçulmanos, pessoas capazes de associar os rituais a um determinado
estado mental ou emocional, coisa que o leitor alienígena obviamente não pode
fazer.
Mas é claro para mim que sem o estado de Ihram o Hajj perde todo o seu
significado, se não estou viajando nas idéias, o Ihram (que também é o nome
da vestimenta despojada que os peregrinos usam) define as exigências
interiores, mentais, emocionais e comportamentais do Hajj, tanto quanto os
roteiros definem as exigências exteriores.
Para o muçulmano o Iham seria a peregrinação da alma, tanto quanto o
cumprimento das obrigações físicas do Hajj, que incluem longas caminhadas e
jogar pedras em Jamrah, o diabo, devidamente representado por colunas de pedras,
representam a peregrinação do corpo.
O que é visível ao observador ocidental e laico é o poder uniformizador do
Ihram.
As centenas de milhares de peregrinos que circundam a Caaba, fazem a parada de
Arafah, caminham até a colina As-Safaa e jogam pedras em Jamrah, se despem de
suas diferenças de origem quando colocam a vestimenta Ihram e assumem o estado
de Ihram. Comerciantes ricos e beduínos pobres, sheiks cultos e tuaregues
analfabetos, sudaneses e indonésios se tornam fisicamente semelhantes pela
roupa e comportalmente semelhantes pelo estado de espírito.
Os do contra podem dizer que tudo isto é lavagem cerebral. Não acho, todas as
regras do Hajj e do Ihram pregam uma extrema interioração, enquanto lavagens
cerebrais destroem o interior para substituí-lo por alguma outra coisa.
É claro que, no resumo, acho tudo muito esquisito e não me imagino fazendo
nada daquilo nunca. Mas o Ihram proporciona a aceitação de uma mistura única
de rituais físicos forçados, quase torturantes, com significados sutis, que
talvez sejam desconhecidos mesmo por muito de seus praticantes.
De toda a forma, uma interessante lição para quem enxerga no Islã apenas os
versos do Corão que ensinam como o muçulmano deve se portar em combate.
Texto de Acauan Guajajara. O autor, cético, autorizou a veiculação do seu artigo no Islamic Chat.
Para uma abordagem religiosa do Hajj visite os artigos "O Hajj e Suas Origens", "Os Rituais do Hajj" e "História da Caaba"