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Carta a um Piloto
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Li
a entrevista dada por seu comandante, Major General Dan Halutz, e, como
muitos outros em Israel e no exterior, fiquei chocado. No
dia 23 de julho um de seus camaradas (ou talvez você?) jogou uma bomba
de uma tonelada numa casa na densa vizinhança residencial em Gaza. O
objetivo era executar, sem julgamento, Salah Shehadeh, um ativista do
Hamas. Além dele, 16 vizinhos, incluindo 11 crianças, foram mortos.
Dezenas de outros homens, mulheres e crianças foram feridos. Na
escola você certamente aprendeu as palavras do poema famoso de Bialik,
o poeta nacional, “Nem mesmo Satã inventou a vingança de uma criança
”. Eu suponho que você esteja destroçado pela dúvida depois deste
ato, que você olha para suas crianças e diz a si mesmo: “Crianças são
crianças. Como as crianças deles são responsáveis pela situação?” E
aqui vem seu comandante e diz que você não tem nenhuma dor de consciência,
nenhuma. Eu não sei se ele está dizendo a verdade ou está caluniando
você. O
general diz que ele contou a você: “Sua execução foi perfeita…Você
fez exatamente o que lhe foi mandado fazer…Você não se desviou nem
uma polegada para a esquerda ou para a direita…Você não tem nenhum
problema ” Os
que têm problemas com esta ação e protestam contra ela (como eu) são
chamados pelo general de “corações sangrando …uma insignificante
minoria vociferante…”. Ele nos acusa da “ousadia de usar métodos
de chantagem ao estilo da máfia contra combatentes…traição é
proibida…um parágrafo deve ser encontrado na lei para pô-los a
julgamento em Israel… (isto) lembra-me do período sombrio do povo
judeu, quando judeus denunciavam outros judeus ”. Ele também condena
“a obsessão de alguns jornalistas…estão entediados…então se
precipitam…” Estas
declarações extremas não testificam a tranqüilidade mental do
general, que diz que tem “um sentimento profundo de justiça e
moralidade ”. Eu diria que na cabeça do general, o boné azul está
queimando.* Cada palavra denuncia histeria. Mas
o estilo deve causar ansiedade profunda. As palavras teriam soado
natural se proferidas por um general na Argentina ou no Chile durante a
ditadura militar, ou por um oficial turco prestes a derrubar o governo
civil. Quando um general israelense usa tais palavras contra a imprensa
e a sociedade civil, uma luz vermelha se acende. Ainda mais se ele não
foi sumariamente dispensado mas, pelo contrário, foi publicamente
aplaudido. A democracia israelense perde estatura. Mas
eu não quero falar com você sobre Dan Halutz, mas sobre você. Quem
é você? O que é você? Um
dos pilotos explicou ao entrevistador, Vered Levy-Barzilai: “(Essa) é
a inimitabilidade e a beleza do mundo do piloto. Você se senta lá em
cima, calmamente, em seu amplo espaço. Não há nenhum ruído, nenhum
estrondo, nem grito de pessoas. Você se foca totalmente no alvo, você
não tem a sujeira e o horror do campo de batalha. Você faz o que tem
que fazer e volta para casa. Dan
Halutz, também, descreve seus sentimentos assim: “Se você realmente
quer saber o que eu senti quando soltei a bomba, eu contarei: eu senti
um leve impacto no avião como resultado da liberação da bomba. Um
segundo depois já tinha passou, e é tudo. Foi isso o que eu senti.” “Isso
é tudo”. Embaixo coisas
horríveis acontecem, corpos mutilados voam pelo ar, feridos contorcem-se
em dor, as pessoas enterradas sob os escombros proferem seus últimos
gemidos, mulheres a gritar
sobre os corpos de suas crianças, uma cena de inferno, não diferente
da cena de um atentado suicida– e “isso é tudo”. Um leve impacto
no avião, e então lar, um banho quente de chuveiro e cama. Devo
confessar que é duro imaginar esta experiência. Servi na infantaria,
eu via em quem eu atirava e quem atirava em mim; podia a qualquer
momento ser ferido (como fui) e morrer. É difícil imaginar a experiência
de uma pessoa lá em cima no céu, semeando morte e destruição sem
correr qualquer perigo. Este
piloto – você! – está afligido pela dúvida? Ele às vezes se
atormenta? Pergunta-se se uma certa ação é permitida, moral, correta?
Ou ele – você! – tornou-se um autômato, um “profissional” que
é orgulhoso de seu controle perfeito sobre a terrível máquina-de-morte
confiada a ele e da execução “exata” de suas ordens? Eu
sei que nem todos os pilotos são autômatos. Eu ainda vejo diante dos
meus olhos o Coronel Yig’al Shohat
lendo seu papel, com uma voz tremendo de emoção, fazendo o seu
apelo histórico a seus companheiro pilotos e pupilos na Força Aérea
para recusarem ordens evidentemente ilegais, tal como esta ação em
Gaza. Shohat, um herói de guerra que foi abatido no Egito e cuja perna
foi amputada por um cirurgião egípcio, é o exato oposto de Halutz. Você
deve decidir – ser um ser humano como Shohat, sensível ao sofrimento
dos outros, ou um autômato como Halutz, que apenas sente um leve
impacto enquanto mata dúzias de seres humanos. As
Normas de Guerra nasceram depois da Guerra dos Trinta Anos, uma das mais
horríveis nos anais da Europa, um holocausto em que um terço da nação
alemã foi varrida e dois terceiros da Alemanha destruída. As convenções
internacionais são baseadas na convicção de que mesmo numa guerra
dura, quando cada lado luta pela sua existência, os mandamentos de
moralidade humana devem ser mantidos. Não
torne as coisas fáceis para si próprio,
ao adotar os lemas primitivos de Halutz, que justifica tudo dizendo que
Shehadeh era uma “encarnação do mal”, palavras que traem seu ponto-de-vista
de ultra direitista. Shehadeh não foi levado a julgamento. Nenhum de
seus atos alegados foram provados. Ele certamente acreditou que servia
ao seu povo, como você acredita que serve o seu. Mas mesmo que fosse
provado que ele era um inimigo perigoso, isto não justifica a matança
de seus vizinhos. O argumento de que esta matança por atacado preveniu
a morte de judeus não é válido. Quando o piloto soltou a sua bomba
ele sabia com certeza que matava muitas pessoas, enquanto a capacidade
de Shehadeh de nos matar era só uma suposição. Por outro lado, era
certo que esta matança levaria a atos de vingança, e uma quantidade de
sangue judeu fluiria por causa dela. Além do mais, há uma enorme
diferença entre um grupo de guerrilha e um exército poderoso agindo em
nome de um estado. Sob
estas circunstâncias, você teria dito ao seu comandante: “Eu me
recuso a cumprir esta ordem, porque é evidentemente ilegal?” A lei
israelense e a moralidade humana obrigam-no a fazê-lo. Mas Dan Halutz
diz: “Recusar a executar uma ordem não é parte das regras do meu
jogo”. E
as regras do seu jogo? * Uma alusão ao adágio judaico: “Na cabeça do ladrão, o chapéu queima,” que quer dizer que o seu comportamento expõe a sua culpa. Texto:
"Letter to a Pilot" de Uri Avnery, retirado do site ZNet,
que
permitiu a utilização de seus artigos. Foi veiculado em outubro de 2002. Uri Avnery é um pacifista israelense judeu de longa data, e membro fundador do Gush Shalom e do Conselho Israelense para a Paz Israelo-Palestina. Avnery também escreveu numerosos livros e artigos sobre o conflito. Leia também nesse site os artigos "Sempre um Combatente, Sempre um Terrorista" de Amira Hass e "Israel: o Estado Demográfico Judeu?" de Uri Avnery. Outros artigos sobre a questão palestina: O Custo de Israel para o Povo Americano
Deixem
os Americanos Conhecerem o Lado Palestino da História
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